Também conhecida como Guerra dos Farrapos, a Revolução Farroupilha foi iniciada em setembro de 1835 e durou até março de 1845. Neste sábado (20), data em que o Dia do Gaúcho é celebrado, as consequências dessa disputa civil ainda podem ser vistas na estrutura do estado do Rio Grande do Sul, mesmo após 180 anos do encerramento do embate.
As batalhas envolviam as elites militares e latifundiárias da província de São Pedro do Rio Grande e as Tropas da Regência do Governo Imperial, à época sediado no Rio de Janeiro. Ideais republicanos, autonomia política e questões fiscais eram os alvos de discordância entre os opositores.
Em entrevista ao iG Turismo, o professor de história Vitor Vogel diz que esta “foi a mais longa das revoltas regentes que aconteceram no Brasil no século XIX”, sendo “fruto de uma insatisfação local que acontecia no Rio Grande do Sul, mas também de um momento complexo de uma ideia de Brasil que era um recém-país independente”.
“Havia muitas mentalidades do que o Brasil deveria ser, de como devia ser o sistema econômico do país, de como devia ser o sistema político e essas ideias acabaram entrando em choque e eclodiram numa grande revolta em 1835”, completa ele, que é um dos criadores do canal Vogalizando a História, no YouTube.
Entre os fatores que desencadearam o conflito, destacam-se a concentração do poderio político nas mãos do governo imperial, bem como o inconformismo dos estancieiros gaúchos diante da elevada tributação local do charque, termo usado para designar a carne bovina salgada e desidratada ao sol, em comparação com o mesmo produto vindo de fora do país.
“Então, se tinha um desejo desses estancieiros gaúchos de que o governo brasileiro taxasse o charque estrangeiro para que isso deixasse uma competição mais justa com o produto local. Os gaúchos acabaram pensando em novas possibilidades e veio a revolta. Então, eu elencaria como o principal fator a inação do governo em taxar o charque estrangeiro. Logo era mais barato comprar de fora do que comprar do Rio Grande do Sul”, recapitula Vogel.
Desenvolvimento político

A estruturação política do Rio Grande do Sul tem a construção permeada pela Revolta Farroupilha, mesmo depois do Tratado de Poncho Verde, consumado em março de 1845 como marco final da guerra civil. A conclusão do conflito só ocorreu após as reivindicações dos rio-grandenses, como o direto de escolher os próprios representantes e a libertação dos escravizados que batalharam na revolução como soldados, serem aceitas.
À reportagem, André Figueiredo Rodrigues, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), diz ainda que a “incorporação dos militares farroupilhas ao Exército brasileiro, com a manutenção de suas patentes e a taxação de 25% sobre o charque importado, protegendo assim a produção local” foram outras conquistas.
Segundo o professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras, câmpus de Assis, e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), os impactos deste marco histórico moldaram o estado gaúcho.
“Teve grande influência na construção dos símbolos que compõem a identidade cultural gaúcha, como o brasão, a bandeira e a vestimenta típica. Esses elementos permanecem vivos nas manifestações populares e são amplamente reconhecidos como expressões da tradição e do orgulho do Rio Grande do Sul. Ao se deparar com uma pessoa vestida com bombacha, botas, chapéu e segurando um chimarrão, se associa imediatamente aquela pessoa com a figura do gaúcho farroupilha, símbolo de resistência e liberdade no imaginário coletivo regional”, analisa.

Simbolismo cultural

Os impactos não se limitaram ao âmbito político, deixando marcas profundas nos patrimônios material e imaterial da cultura gaúcha, conforme aponta o doutor. “Em vários eventos, como a Semana Farroupilha, se vêm traços da herança história da Revolução Farroupilha que permaneceram no tempo: música, dança, roupas, chimarrão e o churrasco, por exemplo. Elementos-símbolos do orgulho e da identidade gaúcha”, lista.
André Figueiredo Rodrigues observa o mesmo parâmetro na figura do “gaúcho guerreiro” e no simbolismo em volta dele. “Por causa da construção que se fez ao longo do tempo para representar o gaúcho como um herói nacional, a Revolução Farroupilha passou a ser reinterpretada como um evento que exalta a bravura e a luta pela liberdade de um povo”.
“Tornou-se mesmo mais do que isto, um instrumento para reforçar uma identidade regional idealizada, muitas vezes desvinculada das contradições do próprio conflito separatista. Ao longo do tempo, o dia 20 de setembro transformou-se na celebração do Dia do Gaúcho e da identidade cultural gaúcha no Rio Grande do Sul, tornando-se um símbolo de patriotismo, da luta pela liberdade e a preservação das tradições gaúchas”, conclui.
Paralelos

Já para o escritor e biógrafo Paulo Rezzutti, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura na categoria biografia em 2016 com a obra “Dom Pedro, a história não contada”, o feriado “passou da memória de um levante armado para uma celebração da cultura e das tradições gaúchas”.
“A data de início do conflito, 20 de setembro, é hoje considerada a data magna do Rio Grande do Sul, comemorada como o Dia do Gaúcho. Ao longo da semana, são realizados eventos relembrando a revolução em várias cidades, com desfiles, cavalgadas e acampamentos, como acontece em Porto Alegre no parque Harmonia. A celebração inclui roupas típicas e atividades culturais que homenageiam a cultura do estado”, acrescenta ao iG Turismo.
O autor ainda põe em contraste a Guerra dos Farrapos com outro conflito histórico, este ocorrido em São Paulo. “A Revoução Farroupilha ajudou a formar a identidade dos gaúchos, concentrando um certo orgulho da história regional, não muito diferente da representação da Revolução Constitucionalista em São Paulo”, compara ele, que produz vídeos para o próprio canal do YouTube.

Paulo Rezzutti ressalta que o conflito ocorrido no Rio Grande do Sul apresenta particularidades em relação a outras disputas registradas no Brasil e até mesmo em outros países. Tais diferenças se devem, na maioria, à longa duração do embate, bem como à sua ampla abrangência territorial, que chegou a alcançar o estado de Santa Catarina.
“Em primeiro lugar a extensão, tanto em espaço quanto em tempo. A maioria das revoltas regenciais foram restritas a poucas cidades, enquanto a Farroupilha atingiu praticamente todo o Rio Grande do Sul e partes de Santa Catarina”, elucida.
“Além disso, a revolução não foi facilmente debelada e se estendeu durante dez anos. Mesmo depois que o governo imperial ganhou a iniciativa e recuperou a maior parte do território, os farroupilhas continuaram ações de guerrilha contra eles. Isso era possível, em parte, por essa ter sido a única das revoltas regenciais a ocorrer numa área de fronteira. As tropas farroupilhas podiam atacar as tropas imperiais e depois fugir, refugiando-se no Uruguai”, comenta.
Influência atemporal
Um dos temas analisados por historiadores e pesquisadores é o legado deixado pela Guerra dos Farrapos para as gerações que se seguiram ao Tratado de Poncho Verde, assinado em março de 1845. Em entrevista ao iG Turismo, o professor Pedro Riccioppo, licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), discute como isso ainda se relaciona com a identidade da juventude gaúcha.
“A memória representa para a juventude gaúcha uma ideia de identificação coletiva, de se identificar entre eles e um aspecto de continuidade histórica, de continuar o que foi feito nos dias de hoje. Por isso, a utilização de vestimentas iguais, com o objetivo de reprodução daquele passado histórico”, expõe.

“A partir do século XX, principalmente metade de 1947 e 1960, temos movimentos que vão se intensificar para ressignificar a Farroupilha, para celebrá-la. O mês de setembro é muito simbólico. Constrói-se toda uma memória e uma herança dos passados dos Farrapos no Rio Grande do Sul”, adiciona ele, que faz conteúdos didáticos sobre história no canal SOS História – Prof. Pedro Riccioppo, no YouTube.
A permanência da memória farroupilha entre as novas gerações mostra como o passado continua exercendo influência sobre a construção da identidade cultural no presente. A juventude gaúcha, ao adotar símbolos, vestimentas e práticas ligadas à Revolução Farroupilha, não apenas revisita um momento histórico, mas também reforça um sentimento de pertencimento coletivo.
Esse processo, como aponta o professor Pedro Riccioppo, é uma forma de dar continuidade àquilo que foi vivido no passado, adaptando-o ao contexto atual. A partir da segunda metade do século XX, esse movimento de resgate e celebração ganhou ainda mais força, especialmente durante o mês de setembro, quando o simbolismo da tradição ganha destaque.
O que se observa é uma construção contínua de memória, que transforma o legado da Guerra dos Farrapos em elemento vivo da cultura regional. Mais do que um fato histórico, a Farroupilha se mantém como referência para o povo gaúcho, especialmente entre os jovens, que a ressignificam como expressão de identidade e orgulho.









