segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

EVEREST 1996: UM DOS MAIORES DESASTRES DA HISTÓRIA DO MONTANHISMO

Durante décadas, o Everest era sinônimo de idealismo puro. Uma fronteira inalcançável, reservada a expedicionários militares, grandes exploradores e montanhistas com uma vida inteira dedicada ao esporte. No entanto, nos anos 1990, a montanha mais alta do planeta começou a mudar. Não em sua forma física, mas em seu significado. O Everest passou a ocupar um novo espaço, não apenas no imaginário global, mas também no mercado internacional.

A abertura política do Nepal e da China desencadeou uma nova era de expedições comerciais. Empresas passaram a oferecer “pacotes completos” para o cume do Everest, algo que antes seria impensável. A ascensão, que exigia anos de preparação técnica, passou a ser vendida como um produto. Havia logística profissional, Sherpas experientes, cozinheiros,  barracas pré-montadas, suprimentos estrategicamente distribuídos, planos de contingência. Para muitos clientes, parecia que tudo o que restava era caminhar e esperar que o sonho se realizasse.

Mas sonhos não se compram como ingressos.
E o Everest, indiferente à economia global, permanecia tão letal quanto sempre fora.

Foi nesse período que se consolidou aquilo que sempre considerei uma mudança profunda na relação ser humano x montanha: a democratização trouxe acesso, mas também estabeleceu uma relação de consumo. Muitos clientes passaram a enxergar o cume como direito garantido e os guias, como prestadores de serviço que teriam obrigação de entregar o produto final: o topo do mundo. E, pior ainda, parte desses novos “montanhistas” chegava ao Himalaia com experiência insuficiente, transferindo aos guias a enorme responsabilidade de compensar essa falta de preparo.

O Everest estava aberto ao mundo, mas nem o mundo, nem o Everest estavam prontos para o que viria em 1996.

OS HOMENS QUE DESAFIARAM A ZONA DA MORTE

Na primavera de 1996, duas expedições se destacavam no Campo Base:
a Adventure Consultants, liderada por Rob Hall, e a Mountain Madness, liderada por Scott Fischer.

Rob Hall era praticamente uma instituição. Neozelandês, metódico, minucioso, responsável até o limite, era considerado um dos guias mais seguros do planeta. Sua empresa entregava não apenas cume, mas confiança. Estava em sua quarta temporada no Everest como líder. Tinha reputação impecável. Um guia que jamais seria imprudente.

Scott Fischer, por outro lado, representava a força bruta. Americano, carismático, resistente como poucos, Fischer era um ícone da era moderna do montanhismo. Estava sempre presente na mídia, era patrocinado, tinha uma equipe vibrante. Sua expedição era mais jovem, mais energética, mais movida a puro vigor.

A presença desses dois gigantes na mesma temporada criou não uma competição declarada, mas uma tensão silenciosa. As agências conseguiam clientes vendendo segurança, mas também resultados. E resultados significavam chegadas ao cume.

Ao redor deles, dezenas de clientes, guias assistentes, Sherpas, repórteres, cinegrafistas e médicos se distribuíam entre as tendas coloridas do Campo Base do Everest. Era uma espécie de microcidade temporária, toda construída ao redor de um único objetivo: subir 8.848 metros acima do nível do mar, onde o ar é tão rarefeito que a mente e o corpo humanos começam a se desfazer.

E é aqui que entra uma das figuras mais controversas de 1996: Anatoli Boukreev, guia principal da Mountain Madness.

Boukreev era um montanhista raiz. Subia sem oxigênio onde alpinistas experientes mal conseguiam sobreviver. Mas sua decisão de guiar clientes sem utilizar oxigênio suplementar, naquela temporada específica, sempre me soou como egoísta. Não por maldade, mas por priorizar sua ética pessoal de escalada acima do dever fundamental de um guia: proteger aqueles sob sua responsabilidade.

Ele era forte o suficiente para sobreviver sem oxigênio. Mas e os clientes?
Na minha visão, guiar sem oxigênio era um risco adicional, um risco que não estava a serviço da equipe, mas apenas de sua filosofia de montanhismo. Mas ironicamente, mais tarde, seria justamente Boukreev quem protagonizaria alguns dos resgates mais heroicos daquela noite.

A tragédia de 1996 não tem um único vilão. Porque o Everest não funciona assim. A tragédia é sempre um mosaico, uma sucessão de elos que vão acontecendo e permitindo que uma tragédia aconteça.

O DIA EM QUE TUDO PARECIA PERFEITO

Na madrugada de 10 de maio, o tempo estava estável. O vento havia diminuído. O céu estava limpo. Era a janela perfeita para o ataque ao cume, aquela raríssima oportunidade que todos esperavam.

Filas de luzes se arrastavam pela montanha enquanto dezenas de alpinistas subiam guiados por  lanternas presos aos capacetes. Era como observar uma procissão mística avançando pela escuridão.

Mas logo cedo surgiu o primeiro grande problema:As cordas do Hillary Step não estavam fixadas. Em condições normais, isso seria uma inconveniência perigosa. Na zona da morte, uma perda de tempo fatal.

A demora criou uma fila enorme. Clientes ansiosos, com pouca experiência, começaram a pressionar guias. A jornada ficou mais lenta, mais cansativa. O tempo limite que, na teoria, deveria ser respeitado rigidamente começou a ser ignorado. Gente que deveria ter voltado continuou subindo, movida pela força invisível da febre de cume.

Esse fenômeno psicológico sempre me impressionou. Depois de gastar dezenas de milhares de dólares, meses de treino, semanas no Himalaia, e estar a poucas centenas de metros do cume, o ser humano simplesmente deixa de ouvir a razão. A desistência parece um fracasso absoluto, um fracasso físico, emocional e existencial. A partir de quando sua expedição passa a custar alguns milhares de dólares, fracasso financeiro. E é isso, na minha opinião, o que mais matou naquele dia. Não foi a tempestade, foi a febre de cume.

O Everest, avesso a negociações, não perdoa atrasos. E naquele 10 de maio, muitos chegaram ao cume tarde demais. Enquanto fotos eram tiradas, enquanto bandeiras eram erguidas, enquanto lágrimas de triunfo congelavam no rosto dos clientes, a tempestade começava a crescer no oeste, como um animal predador preparando um ataque.

Os alpinistas não sabiam, mas já haviam atravessado a fronteira invisível entre “zona da morte” e “ponto sem retorno”.

QUANDO A MONTANHA APAGA A LUZ

A tempestade não anunciou sua chegada. Ela simplesmente caiu sobre a montanha.Os ventos subiram a velocidades violentas. A iluminação desapareceu. O caminho sumiu sob a neve repentina. Os reguladores de oxigênio congelaram. As máscaras sopravam gelo em vez de ar.

E, dentro daquele caos absoluto, montanhistas que já estavam exaustos passaram a descer lentamente, alguns sem visão, alguns sem consciência plena. Clientes que mal sabiam utilizar seus equipamentos tentavam navegar em uma tempestade que nem alpinistas experientes enfrentariam com segurança.

No topo do Everest, cada segundo é vida ou morte. E cada passo pode ser o último.

Foi nesse cenário apocalíptico que três grandes dramas se desenrolaram ao mesmo tempo.

ROB HALL: O GUIA QUE NÃO DESCEU

Rob Hall, preso acima do Hillary Step com seu cliente Doug Hansen, não teve dúvidas sobre seu dever. Hansen estava completamente incapacitado e abandonar um cliente era algo que Hall jamais faria.

Ele enviou mensagens pelo rádio pedindo oxigênio de reserva. Mas os cilindros no Campo IV estavam vazios, desorganizados, misturados.

A noite caiu. A temperatura despencou. E Hall ficou ao lado de Hansen até o fim.

Hansen morreu primeiro. Hall resistiu, congelando lentamente.

Ao amanhecer, ainda consciente, fez uma chamada via satélite para sua esposa grávida na Nova Zelândia. É talvez a despedida mais trágica e íntima já registrada em montanhismo.

Pouco depois, silenciosamente, o Everest o levou também.

SCOTT FISCHER: O GIGANTE QUE CAIU

O outro líder da temporada também não sobreviveria. Scott Fischer estava exausto há dias.
Seu corpo dava sinais de esgotamento profundo. Sherpas tentaram ajudá-lo, puxá-lo, arrastá-lo. Mas Fischer já não conseguia mais permanecer consciente.

Ele morreu no Colo Sul, a poucos metros de onde os sobreviventes tentavam reorganizar o caos.

Assim como Hall, Fischer não foi vítima apenas da tempestade.
Foi vítima de semanas de desgaste acumulado, desgaste que ninguém havia levado a sério o suficiente.

A LONGA NOITE DOS ESQUECIDOS

Enquanto líderes morriam nos extremos da montanha, um grupo grande de alpinistas enfrentava o inferno no meio da rota.

Pelo menos onze pessoas ficaram totalmente perdidas na tempestade. Algumas se abraçaram tentando sobreviver. Outras começaram a congelar lentamente. Yasuko Namba, já cega pela nevasca, caiu e não conseguiu mais se levantar.

Beck Weathers, talvez o caso mais emblemático daquele dia, foi dado como morto. Seu rosto congelava, seus dedos necrosavam. Seus companheiros, sem força para carregá-lo, foram obrigados a deixá-lo.

E então, algo impossível aconteceu.

OS HERÓIS DA TEMPESTADE

Por mais que suas escolhas iniciais fossem controversas, Anatoli Boukreev protagonizou os atos de bravura mais significativos daquela noite.

Enquanto muitos mal conseguiam se manter em pé, ele saiu três vezes do Campo IV, sozinho, sem visão, sem segurança, procurando por sobreviventes.

Arrastou alguns. Levantou outros. Guiou pessoas completamente desorientadas até a salvação.

É importante reconhecer os erros, mas também honrar o heroísmo. E Boukreev executou feitos que nenhum outro guia conseguiu naquela noite.

O HOMEM QUE VOLTOU DOS MORTOS

Ao nascer do sol, Beck Weathers abriu os olhos.Cego,coberto de gelo, com necrose avançada, com o rosto irreconhecível, sem luvas, sem forças.E mesmo assim, levantou.

Cambaleou pelo Colo Sul, caminhou como um fantasma, caiu inúmeras vezes, levantou outras tantas, até chegar próximo das barracas. Quando os sobreviventes o viram surgir da nevasca, pararam como se presenciassem um milagre bíblico.

Poucas histórias de sobrevivência se comparam à dele.

AS LIÇÕES QUE O EVEREST DEIXOU

O desastre de 1996 se tornou um divisor de águas.
Não apenas pela quantidade de mortos, mas pela natureza do erro.

Na minha visão, as causas principais foram:

• A transformação da montanha em produto
A pressão comercial transformou o cume em mercadoria e clientes passaram a exigir resultados.

• A febre de cume
Mais do que a falta de capacidade física, o que matou aquelas pessoas foi a ilusão de que desistir era fracassar financeiramente, emocionalmente e existencialmente.

• O cansaço extremo dos líderes
Fischer e Hall atuaram no limite de suas forças e o limite cobrou seu preço.

• Decisões individuais que não contemplaram o coletivo
Como o guia sherpa que ao invés de levar a corda até o escalão Hillary estava guiando individualmente Sandy Pittman.

• A falta de respeito ao horário limite
No Everest, minutos tornam-se mortes.

O Everest não mudou. Mas nós mudamos. E 1996 obrigou o mundo da montanha a repensar ética, liderança, segurança e a função das expedições comerciais.

O EVEREST HOJE: O LEGADO DE 1996

A tragédia desencadeou reformas. Expedições começaram a estabelecer protocolos mais rígidos. Horários limites se tornaram regra.Guias ganharam mais autonomia para cancelar ataques ao cume e os sherpas foram se destacando, ganhando experiência e qualificação e se tornando melhores que os guias ocidentais.

As rotas passaram a ser coordenadas por grupos maiores, com divisão de responsabilidades.

Ainda assim, o Everest continua perigoso e continua atraindo gente que deseja comprar um sonho sem compreender o custo real. Mas 1996 permanece como a maior advertência da história da montanha.

O EVEREST NÃO TIRA NEM DÁ NADA. ELE APENAS REVELA.

No fim, o que aconteceu naquele ano não foi apenas uma sequência de tragédias individuais. Foi um espelho. A montanha mais alta do mundo mostrou, de uma vez só, tudo aquilo que o ser humano tenta esconder em ambientes seguros:

• ambição
• ego
• medo
• vaidade
• coragem
• solidariedade
• desespero
• esperança
• limitações físicas e emocionais
• e, acima de tudo, a fragilidade inevitável da vida

Porque, no Everest, ninguém conquista nada. Ele é que, silenciosamente, decide quem pode subir e quem não desce mais.

E naquela noite de 1996, o Everest decidiu lembrar ao mundo quem estava no controle

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