No teto do mundo, onde o oxigênio rareia e cada passo pode ser o último, a ética deveria ser tão indispensável quanto uma máscara de oxigênio. Mas, na rota para o Everest, a montanha que transformou a aventura em indústria, a busca pela glória às vezes cobra um preço que não se mede em metros de altitude, e sim em vidas humanas.
A trajetória do montanhista argentino Gustavo Lisi é um dos casos mais emblemáticos e perturbadores dessa zona cinzenta. Relatada em detalhes pelo jornalista Michael Kodas no livro High Crimes, sua história expõe uma sucessão de fraudes, negligências e abandonos que transformaram o Everest em palco de tragédias anunciadas.
Gustavo Lisi é um montanhista argentino cuja trajetória se tornou sinônimo de controvérsia no universo do alpinismo sul-americano. Apresentando-se por anos como guia de alta montanha, Lisi construiu sua reputação sobre um currículo repleto de credenciais questionáveis, relatos inconsistentes e episódios de conduta duvidosa. Em vez de feitos heróicos, seu nome acabou associado a acusações de fraude, abandono de clientes e apropriação indevida de equipamentos, práticas que desafiam frontalmente o código ético do montanhismo profissional.
Expulso de mais de um clube de montanha em seu país e repetidamente confrontado por colegas e instituições devido a alegações de falsificação de credenciais, Lisi percorreu a fronteira entre Argentina e Bolívia oferecendo seus serviços como guia. Foi nesse território, onde a informalidade muitas vezes substitui a certificação rigorosa, que encontrou espaço para conquistar a confiança de clientes desavisados, entre eles o médico boliviano-americano Nils Antessana e o carteiro espanhol Juan Carlos Gonzales, protagonistas das tragédias que marcariam sua carreira.
O Roubo do Sonho: O Sacrifício de Juan Carlos Gonzales (Everest Norte, 2000)
O primeiro grande episódio envolvendo Lisi ocorreu na face norte do Everest, no ano 2000, durante uma expedição espanhola. Entre os membros estava Juan Carlos Gonzales, um carteiro espanhol que havia dedicado décadas de economia para realizar seu sonho de chegar ao topo do mundo.
Embora escalando de forma independente, Lisi compartilhava parte da logística com o grupo. No ataque final ao cume, por volta dos 8.500 metros, o argentino recuou. Juan Carlos, movido por uma determinação quase ingênua, continuou com o Sherpa Lhakpa e alcançou o cume, tarde demais.
A descida se transformou em pesadelo. Exaurido e afetado pelo Mal Agudo da Montanha, Juan Carlos mal conseguia se manter em pé. O Sherpa, também debilitado, tomou uma decisão extrema: abandonou-o para salvar a própria vida.
Milagrosamente, o espanhol rastejou até o acampamento, onde chegou em estado crítico. Sobreviveu, mas à custa da amputação de sete dedos das mãos devido aos congelamentos.
A pior traição, porém, ainda estava por vir. No hospital, Juan Carlos pediu suas fotos do cume, o único troféu de uma vitória conquistada com dor e quase ao custo da vida. Sua câmera, no entanto, havia desaparecido. Alguns anos depois, descobriu-se que Gustavo Lisi havia usado as fotos como se fossem suas, retornando à Argentina e anunciando à imprensa local sua suposta ascensão ao Everest.
Lisi, além de mentir que havia feito cume na montanha mais alta do mundo, havia roubado a câmera do espanhol desfalecido, achando que o mesmo não resistiria. As imagens no cume de um montanhista usando máscara de oxigênio e todas as roupas não deixaria que ninguém duvidasse que, por trás de todo aquele vestuário seria Lisi e não Gonzalez.
Quando confrontado, afirmou ter destruído os negativos “por vergonha”. Juan Carlos ficou sem os dedos e sem a prova de sua própria façanha. Lisi, por sua vez, passou ileso pela fraude e pelo roubo, uma vez que naquela época pré internet, poucos em seu país souberam do caso.
Mas Lisi seria de fato um mentiroso contumaz? Ou apenas se aproveitou da ocasião? Será que ele se arrependeu desta fraude absurda? As histórias que vem a seguir contam estas perguntas.
Enganando cliente para conseguir uma segunda chance no Everest
Apesar do passado comprometedor, Lisi conseguiu novamente se apresentar como guia respeitável. O alvo da vez foi o médico boliviano-americano Nils Antessana, apaixonado pelas montanhas de seu país e cliente frequente das expedições de Bernardo Guaracho, o primeiro boliviano a alcançar o Everest.
Antessana que morava nos Estados Unidos, alimentava o sonho de escalar a montanha mais alta do mundo, mas Guaracho recusou-se a guiá-lo devido à idade do médico, que se aproximava dos 65 anos. Foi então que Lisi, que vivia entre Argentina e Bolívia trabalhando como guia sazonal, entrou em cena com a mentira decisiva:
“Eu já escalei o Everest. Posso guiá-lo lá em cima.”
A confiança construída em expedições anteriores na Bolívia e a promessa de experiência fizeram Antessana acreditar. Determinado a transformar o sonho em realidade, ele adquiriu os melhores equipamentos disponíveis e fechou contrato com Lisi, sem saber que estava entregando sua vida a um impostor.
O Abandono Fatal: A Tragédia de Nils Antessana, Everest 2004
A expedição de 2004, pela face sul do Everest, rapidamente mostrou sinais de descoordenação e negligência. Segundo testemunhas, Lisi frequentemente acelerava o passo, chegando aos acampamentos antes do cliente e deixando de oferecer o suporte indispensável para um guia de alta montanha, especialmente quando o cliente tinha quase 70 anos.
O ataque ao cume marcou o ponto de ruptura. Exausto e debilitado pela altitude extrema, Antessana lutava para sobreviver na Zona da Morte. Foi então que Lisi, acompanhado por dois Sherpas, tomou a decisão que o marcaria para sempre: Abandonou o médico próximo ao Balcony, a cerca de 8.400 metros de altitude.
Nils Antessana jamais voltou a ser visto.
O comportamento de Lisi após o abandono é descrito como um dos aspectos mais frios do caso. Ao chegar ao acampamento, ele não buscou organizar um resgate nem reportou imediatamente o desaparecimento. Em vez disso, usou o telefone satelital para atualizar seu site pessoal, divulgando a própria “conquista do cume” enquanto o destino de Antessana permanecia incerto.
A investigação conduzida pela filha do médico, Fabíola Antessana, revelou ainda mais irregularidades: Lisi exigiu o pagamento da gorjeta combinada (US$ 5.000), apesar de ter abandonado o cliente. Os valiosos equipamentos de Antessana haviam sumido, substituídos por peças velhas e surradas que claramente eram dos sherpas. Os pertences originais foram encontrados posteriormente trancados nos tambores de equipamento de Lisi, mostrando que o argentino pretendia ficar com os equipamentos.
A ausência do corpo sugere que Antessana continuou caminhando sozinho, num último esforço para sobreviver, provavelmente desorientado pela hipóxia extrema. Morreu tentando salvar a própria vida, sozinho, abandonado e traído.
Um Histórico de Enganos: Expulsões, Fraudes e Falsas Credenciais
A atuação de Gustavo Lisi no Everest não foi um desvio isolado. Pelo contrário: seu histórico mostra um padrão consistente de conduta antiética.
Gustavo Lisi começou a escalar no início da década de 90 e em 1995, foi expulso de seu primeiro clube de montanhismo por usar indevidamente o nome da instituição para arrecadar fundos para uma expedição particular. Anos depois, foi expulso de um segundo clube em Salta, acusado de roubo de dinheiro e equipamentos.
Antes mesmo do Everest, Lisi já demonstrava imprudência. No Huayna Potosí, na Bolívia, abandonou um cliente americano durante a descida, deixando-o sozinho em uma montanha cheia de gretas perigosas enquanto ele próprio descia sem corda.
Lisi exibia com frequência o distintivo da UIAGM, a mais respeitada entidade de guias do mundo, alegando ter se formado na Itália. A própria instituição desmentiu a informação. A insígnia era, simplesmente, uma peça de propaganda mentirosa que ele usava em suas roupas e equipamentos de montanha.
Conclusão: A Montanha que Revela Caráter
As tragédias de Juan Carlos Gonzales e Nils Antessana permanecem como advertência contundente sobre os riscos éticos que rondam o montanhismo comercial. No Everest, onde cada decisão pode significar vida ou morte, um guia deve carregar mais que equipamentos: deve carregar responsabilidade. Quando a ambição fala mais alto do que a ética, o preço da glória deixa de ser metafórico. Torna-se permanente, irreversível e fatal.
Conheci alguns guias de montanha bolivianos que trabalharam com Lisi que me afirmaram que ele era uma figura frequentemente vista por La Paz e suas montanhas, mas que de alguns anos para cá, deixou de aparecer. Segundo uma publicação da American Alpine Club, Lisi continua vinculado ao montanhismo: há relatos dele guiando em montanhas na Bolívia, como o Illimani. Isso sugere que, apesar das controvérsias, ele ainda atua no ramo de guias ou relacionados a alpinismo.
Seu nome ainda é citado em fóruns de escalada e no Reddit, onde pessoas questionam por que ele ainda está “listado oficialmente” em algumas organizações de montanhismo, dada sua história. Também não há grandes reportagens investigativas novas, o que deixa dúvidas sobre se ele recuou da vida pública, mudou de foco ou simplesmente opera em nichos menos visíveis do montanhismo.
A saga de Gustavo Lisi no Everest, marcada pela mentira e pelo abandono, suscita uma questão final e inevitável: valeu a pena? A “glória” conquistada sobre a tragédia de Nils Antessana e a traição a Juan Carlos Gonzales se transformou em uma condenação permanente. Hoje, Lisi é refém de seu próprio passado; o nome que ele tentou ligar ao topo do mundo está indelevelmente associado à fraude, à desonra e, em última instância, à morte. A mentira que o levou ao Everest tornou-se a âncora que o prende a uma reputação de impostor.
Em contraste brutal, Nils Antessana, a vítima de sua ambição, perdeu a vida, mas permanece como o símbolo doloroso do custo real da fraude. Sua tragédia expõe a fragilidade humana diante da montanha e, pior, diante da falta de ética. O Everest de Lisi foi uma ascensão vazia, enquanto o Everest de Antessana foi um sacrifício imposto pelas mentiras alheias. O legado de Lisi não é o cume, mas o vazio deixado por quem se foi, provando que na montanha, o caráter, e não a altitude, é o verdadeiro indicador de valor.









