A primeira vez que tentei encarar o Huascarán foi em 2016. Entretanto, apenas cheguei em Lima e já dei de cara com a notícia de que uma avalanche havia levado a vida de dois mexicanos e seus guias peruanos. A montanha foi fechada devido ao perigo de novas avalanches e, resignado, aproveitei minha estadia no Peru para escalar outras montanhas na Cordilheira Branca. Voltei para casa carregando algo que não cabia na mochila: uma dívida. Uma dívida feita de gelo, medo, respeito e frustração. Uma promessa feita em silêncio: eu volto.
Seis anos se passaram. Seis anos nos quais o Huascarán não foi apenas uma montanha. Foi um fantasma. Uma ausência que ano após ano eu lamentava em não poder encaixar em minha agenda. Isso mudou em 2022, após uma temporada puxada de trabalho na Bolívia, senti que a hora tinha chegado. Estava aclimatado e tinha duas semanas livres para ir ao Peru e voltar, a oportunidade parecia falar comigo, como se dissesse: agora.
As condições em 2022 estavam boas. O risco de avalanche era baixo, o que é algo que não acontece todos os anos. Até o início de 2000, a montanha mais alta do Peru era um destino comum, tanto que a montanha tem uma estrutura que poucos cumes andinos têm: um bom refúgio em sua base. Entretanto, as mudanças climáticas transformaram a montanha e aquilo que antes era uma escalada apenas exigente se tornou perigosa, com chances maiores de quedas em gretas e avalanches.
A vontade de fechar aquele ciclo era enorme. Eu e Maria Tereza, minha companheira de cordada, minha força silenciosa, minha parceira de tantas montanhas, decidimos tentar de forma completamente autônoma. Nada de ajuda externa. Nada de mulas. Nada de carregadores. Tudo seria levado nas costas: barraca, cordas, fogareiros, comida, sonhos, dúvidas.
Chegamos a Huaraz carregando mochilas de 35 kg cada. E, por mais absurdo que pareça, o peso físico ainda era menor que o mental. A cada passo que dávamos rumo ao refúgio, eu sentia que estava caminhando não só para a montanha, mas também em direção ao passado que eu tinha deixado congelado lá atrás.
A aproximação foi longa, dura, silenciosa. O peso na mochila me jogava de volta para a cidade, mas fomos ganhando altura até onde deu. Cerca de uma hora antes do refúgio tive que tirar parte do peso de minhas costas e esconder na vegetação para voltar e resgatar no dia seguinte. Não aguentava mais! Quando avistei o refúgio no final da tarde, a luz amarelada parecia um convite ao descanso. Mas a montanha não costuma oferecer conforto sem cobrar algo em troca. Antes mesmo de chegar à porta, dei de cara com um grupo de resgate. E então a realidade me atingiu com a força de uma parede de gelo: um montanhista equatoriano havia caído em uma greta e não resistiu. O drama só aumentou, pois um dos resgatistas ainda quebrou a perna prestando socorro.
A cena não era dramática como nos filmes. Era silenciosa. E por isso mesmo, devastadora.
Aquilo mexeu comigo. Senti meu ânimo murchar. A pergunta inevitável ecoou dentro de mim: Será que vou ter que ir embora sem a montanha de novo? É duro começar uma ascensão sendo recebido pela morte. O Huascarán parecia querer testar minha coragem antes mesmo do primeiro passo sério.
A noite caiu pesada, densa. O silêncio no refúgio, que estava fechado ao público naquela temporada, era quase tão frio quanto o vento lá fora. Eu tentava me convencer de que seguir era racional, que risco é parte da montanha, que acidentes acontecem. Mas havia um peso emocional difícil de ignorar, uma angústia que assombrava meus pensamentos.
Foi então que, como um presente improvável do destino, dois argentinos chegaram: Cristian Rivera e Max Cavalim. Eles apareceram como fagulhas num ambiente escuro. São tantos meus anos de experiência na Argentina, que este país forjou minha cultura. Como bons argentinos, a dupla era inteligente, tinha boas experiências e bom papo. Conversamos, rimos um pouco, compartilhamos nossas teimosias de montanhistas. De repente, aquela atmosfera pesada começou a se dissolver. Montanha tem disso: às vezes, a parceria certa salva mais que qualquer equipamento.
O plano foi traçado: portear carga até o C1, dormir e, então, encarar de madrugada o trecho mais técnico — a famosa Garganta.
Carregar tudo aquilo montanha acima parecia uma penitência. Só de comida eram 15 kg. Cada passo era um lembrete de que autonomia tem um preço. Mas também era um aviso de que, se eu chegasse ao cume, aquilo seria realmente meu. Nosso.
Finalmente montamos o C1 e, no dia seguinte, partimos para a Garganta. Aquele trecho… é difícil explicar para quem nunca esteve lá. É como uma cascata de gelo vertical, viva, rangente. Você sente a parede inteira estalar, respirar, tremer. Basicamente é um trecho técnico e vertical, mas que você precisa escalar com as cargueiras nas costas, carregando além de equipamentos técnicos, seus equipamentos de camping, como barracas, saco de dormir, panelas, fogareiro e a pesada comida.
Era fundamental cruzá-la de madrugada, antes que o sol tocasse o gelo e tudo ficasse instável demais. Escalei como se estivesse devolvendo cada dívida que o Huascarán tinha me cobrado. Cada golpe do piolet parecia ritmar meus pensamentos. A motivação era grande, a previsão do tempo favorável e sabíamos que naquela temporada, apesar do acidente, as condições eram as melhores possíveis.
Montamos então o C2. Mas a montanha, caprichosa, decidiu mudar as regras. Uma nevasca pesada na hora que acordamos de madrugada para ir ao cume cobriu o caminho. Tudo ficou branco, confuso, perigoso. A visibilidade caiu diante da noite de lua nova, a rota desapareceu, e com ela, a segurança e as certezas.
Procurando o caminho no escuro, fomos até o início de uma parede inclinada. A exaustão acumulada, a incerteza e a falta de energia para “tentativas e erros” me fez tomar a amarga decisão: Não teria energia para corrigir algo que desse errado e diante deste cenário era melhor voltar do que ficar lá pra sempre.
Não foi fácil. Não foi glorioso. Foi necessário. E voltamos para Huaraz com a sensação de que um novo fracasso começava a se formar.
Mas a montanha ainda nos chamava.
Christian já havia voltado à Argentina. Porém, durante um almoço de ceviche com cuscuña, Max, olhando o celular, comentou algo que eu já havia notado, mas que não havia comentado: Havia outra janela de bom tempo! Quatro dias que seriam o justo para irmos e retornarmos. Eu, Maria e agora Maximo Cavallin. Ainda tínhamos uma chance.
Em uma tarde compramos as provisões que necessitaríamos. Para aliviar o peso nas costas, rachamos em 3 um porteador (carregador) e rapidamente fizemos os contatos necessários para conseguir um meio de transporte, arrumar as mochilas e partir.
Desta vez a aproximação foi menos penosa e mais rápida, mas não menos difícil. Apesar da ajuda do porteador, ele mesmo precisa carregar seu saco de dormir, precisa comer… Ou seja, carregamos menos, mas temos mais coisas para levar, dado que há um novo integrante. No final, o alívio foi de menos de 5 kg…
Chegamos no refúgio cansados. Max não se sentia bem e quis desistir. Conversei com ele, mas a angústia e a incerteza tomaram conta de seus pensamentos. Eu sei bem como são estes sentimentos, a conversa não adiantou, ele se sentia desconfortável e acabou descendo. Quase na mesma hora em que nosso amigo argentino desapareceu no horizonte, apareceu na mesma direção um grupo de homens fardados subindo em sentido oposto. Estes policiais chegaram no refúgio, conversaram com um guia que se preparava para deixar a montanha e rumaram para o glaciar. Achando a cena curiosa, fui até o guia e perguntei o que estava acontecendo e ele me contou que, caminhando despretensiosamente pela base da geleira, havia encontrado restos humanos: botas, sacos de dormir, equipamentos, todos em estado lastimável na base da geleira. Haviam ossos e tudo mais!
Não aguentei, dei um tempo e fui junto com nosso porteador descobrir o que havia acontecido. Na base do glaciar, encontramos restos de três montanhistas desaparecidos há vinte anos que emergiram agora do gelo, expostos pelo degelo acelerado. Vi pedaços de roupa, metal corroído, partes de equipamentos que um dia foram esperança de alguém. A hipótese: Foram engolidos por uma avalanche e, ao passar de décadas, foram exumados novamente.
Era novamente o Huascarán mostrando seus perigos, como na primeira e na segunda tentativa. Em cada vez que eu cogitava escalar essa montanha a morte se mostrava para mim de forma sinistra e assombrosa.
Retornei ao acampamento tentando não pensar desta forma. Se houve um acidente no passado com outras pessoas, o mesmo não precisa se repetir conosco! Afinal, naquele ano não havia ocorrido nenhuma avalanche e a queda do equatoriano na greta havia sido uma fatalidade. Isso não precisa acontecer conosco!
Chegar ao C2 novamente foi como enfrentar um déjà-vu físico e emocional. Mas algo estava diferente. O desgaste havia se multiplicado. A altitude, a exaustão, os dias sem descanso verdadeiro… tudo isso cobrou seu preço. A Maria, que sempre foi fortaleza ao meu lado, estava no limite. E lá em cima, no silêncio cortante da montanha, ela tomou a decisão mais dura da expedição: Desistir!
Eu vi nos olhos dela a luta interna. E também vi a força — força de reconhecer que parar também é ser forte.
Mas eu, por mais que estivesse cansado, estava disposto a continuar e a encerrar aquela agonia. No acampamento havia, além de nós, dois irmãos mexicanos, Ariel e Gustavo Alarcon, que seguiriam até o cume, pedi então para fazermos uma cordada de três. Saímos na madrugada, sob um céu tão estrelado que parecia falso. A rota era cruel. Numa das travessias, encontramos uma ponte de gelo fina, frágil, quase transparente. A sensação era de caminhar sobre vidro. Cada passo ecoava como se o gelo estivesse pensando em ceder. A vida, ali, dependia de alguns centímetros congelados.
Mas seguimos…
Passamos pelo local que havíamos retrocedido na vez anterior. A rota era por ali, sendo necessário subir uma vertente íngreme de 60 graus por cerca de 120 metros, quando ela deitava e permitia dar segurança a meus novos companheiros. A ascensão transicionava entre locais íngremes e platôs que permitiam bom descanso. O tempo todo exigia o uso de cordas e piolets técnicos por caminhos nada óbvios que exigia bom senso de orientação num labirinto de vales e cristas de gelo.
Ao amanhecer, a inclinação suavizou e passamos a caminhar por uma diagonal. Entretanto, quanto menos íngreme, mais acúmulo de neve e passamos a afundar na superfície nevada até o joelho. Abrir o caminho passou a ser algo fisicamente exaustivo e cedi a liderança para Ariel, que era maior e mais forte que eu. O mexicano foi abrindo as pegadas até que enfim não havia mais nada o que subir…
E quando finalmente alcancei o cume do Huascarán Sul, a 6.768 metros, senti algo que não sei traduzir completamente. Estava acima das nuvens, mas carregava o mundo inteiro nos ombros.
Não era só vitória.
Não era só alívio.
Era um reencontro com um jovem sonhador que teve seu sonho interrompido, as mudanças climáticas que transformaram um clássico andino numa montanha mortal e perigosa. Era um abraço silencioso no passado. Era o fechamento de um desejo que eu carreguei por anos! Enfim, estava chegando ao topo da montanha mais alta do Peru, completando também a mais alta de todos os mais importantes países andinos: Argentina, Chile, Bolívia, Equador e agora o Peru!
Olhei para baixo e pensei na Maria. Em tudo que ela enfrentou. Em tudo que sacrificou.
Pensei naqueles corpos encontrados no gelo.
Pensei no equatoriano que encontramos no refúgio.
E pensei no quanto aquela montanha já cobrou de tantas pessoas.
Desci com cuidado redobrado. A travessia da Garganta na volta me mostrou o quanto aquela ponte de gelo estava perto de ruir. Mais um lembrete de que a montanha permite a vitória, mas nunca a garante.
O Huascarán Norte ficou para depois. Ficou como promessa. Promessa minha e da Maria. Promessa não de conquista… mas de parceria.
Eu jurei ali, ainda com o rosto queimado pelo frio, que voltaria com ela.
Que faríamos o cume duplo juntos.
Que transformaremos aquela dívida num capítulo final.
A montanha ainda nos espera.
E quando voltarmos, será juntos.
Como sempre deveria ter sido.








