Cultivar a dúvida, mais do que curvar-se a respostas instantâneas, talvez seja a última fronteira da nossa inteligência orgânica
Sempre que convido alguém para o Inteligência Orgânica começo avisando: este é, por princípio, um podcast pessimista. Pessimismo ativo, claro – aquele que encara a realidade sem o verniz do otimismo fácil e procura, a partir dela, algum caminho de melhora.
Ao receber a professora e linguista Carol Jesper, autora de Não Foi Isso Que Eu Quis Dizer, levei o pessimismo ao extremo: perguntei se ainda faz sentido aprender a escrever num mundo em que a inteligência artificial costura parágrafos impecáveis, revisa sintaxe e devolve tudo com pontuação de manual. Ela ouviu, achou graça e devolveu a provocação lembrando que a escrita também é tecnologia – só que uma tecnologia que modela o pensamento.
Carol defende que pôr ideias no papel (ou na tela) é ginástica cognitiva. A fala é impulsiva; o texto exige edição, releitura, ordem. Se terceirizarmos esse esforço à máquina, ficaremos como quem cola músculos de silicone: podemos exibir um tanquinho, mas não levantamos um copo d’água sem ajuda.
A conversa nos levou a outra evidência incômoda: diplomas não significam letramento. Dados do Núcleo Brasileiro de Estágios mostram desempenho baixo em provas de leitura justamente entre universitários de Letras e Direito – ironia crua num país em que o canudo costuma inflar egos e sufocar dúvidas. O resultado é conhecido: muita gente com título nas costas e convicções absolutas na mão, fazendo eco a manchetes mal lidas e teorias que não resistem a três perguntas simples.
Falamos do preconceito linguístico que se esconde atrás de correções “bem-intencionadas”. A tal norma culta, lembramos, é um conjunto de regras criado depois que a língua já existia. Torná-la instrumento de humilhação é, na essência, preconceito social. Corrigir alguém sem combinar o jogo é violência, não tutoria. No ambiente profissional, a regra de ouro é negociar: aqui valorizamos determinados padrões; tudo bem se eu apontar eventuais deslizes? Fora desse acordo, correção vira arma de vaidade.
E a inteligência artificial? Carol não a demoniza. Usa, por exemplo, para pedir cinco formas elegantes de substituir expressões preconceituosas. Mas faz isso depois de rascunhar as próprias ideias – nunca antes. O risco é achar que o texto gerado pela máquina é, automaticamente, nosso. Não é. Ele pode, no máximo, refletir um repertório que entregamos de bandeja ao algoritmo.
Terminamos o episódio com um convite à honestidade intelectual. Antes de zombar de uma notícia que fala em “fome e obesidade” na mesma frase, pergunte qual conceito de fome está em jogo, qual recorte de realidade sustenta o dado. Cultivar a dúvida, mais do que curvar-se a respostas instantâneas, talvez seja a última fronteira da nossa inteligência orgânica – aquela que nenhuma IA, por mais otimista, consegue simular sem a nossa vigilância.
O episódio está no ar. Ouça, depois me conte: qual foi a sua última “falsa certeza” linguística?
Confira o vídeo: