sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Entre barracos que desabam e sonhos que resistem, favelas de Campo Grande pedem fim da invisibilidade

Renata Amarilho Gemines não conseguiu se segurar. De pé, no plenário da Câmara Municipal de Campo Grande, ela fez um pedido de socorro. “Vai precisar uma criança morrer debaixo de uma árvore ou de um barraco de lona em cima dela para olharem para nós?” A moradora da Cidade dos Anjos representa 150 famílias que vivem sem infraestrutura, com medo de tempestades e árvores frágeis que ameaçam desabar sobre as casas.

A cena foi uma das mais dramáticas da audiência pública realizada nesta sexta-feira, 14 de novembro, na Câmara Municipal. Pela primeira vez na história da cidade, o poder público reuniu mais de 60 comunidades para ouvir relatos sobre a situação das favelas de Campo Grande. Segundo levantamento da Associação das Mulheres de Favela de Mato Grosso do Sul, são 62 favelas, com cerca de 40 mil pessoas vivendo em barracos de lona, madeira e zinco, sem água encanada, luz regular, esgoto ou endereço.

“Estamos aqui pedindo socorro. Olhem para as nossas crianças. Vivemos naquele lugar há mais de cinco anos e precisamos de um socorro”, disse Renata. Ela contou que as mães voltam do trabalho e encontram o barraco no chão. “Temos crianças ali doentes, não só na saúde física, mas também psicológica. As crianças já estão desesperadas. Vocês imaginam os pais”.

15 barracos destruídos em um temporal

Daniele da Silva Hurtado, da comunidade Esperança José Teruel, trouxe um relato recente. Na quarta-feira passada, um temporal destruiu 15 barracos. “Naquele momento, foram quase 15 barracos destruídos. Mãe correndo com seus filhos e não tem para onde ir”. Ela contou que um barraco usado como espaço comunitário para ceia das crianças, coberto com telha de zinco, teve o telhado arrancado pelo vento. “Aquela telha voou, crianças correndo, mães gritando, pedindo socorro no WhatsApp”.

Daniele pediu ajuda para tirar uma mulher de dentro de casa. Quando chegou, o barraco já estava desabando. “A gente precisa de uma casa, a gente precisa ter um conforto para nossos filhos. Eu peço para vocês que olhem por nós.”

A comunidade de Daniele vive em área contaminada. “Tem uma doença nas crianças que vira pus e aquilo lá parece ser um tumor e dói”, disse. Ela está há 13 anos no local. Outras famílias vivem lá há sete anos.

“Levantava a cama para proteger meus filhos”

Alexandra de Lima, conhecida como Pequena, vive na Homex, maior ocupação do Estado de Mato Grosso do Sul, com mais de 1.500 famílias. Ela já tem título provisório, mas vive em um imóvel de alvenaria que balança com chuva e vento. “Nos dias de chuva é um terror. Quando as crianças eram pequenas, eu erguia a minha cama para colocar meus filhos debaixo, porque as paredes balançavam tudo. Minha casa tem o teto caindo em cima de mim”.

Pequena foi direta: “Nós não precisamos apenas de papel. O poder executivo e o legislativo têm que dar condições para todas as comunidades. Papel não protege ninguém”

Agrovila produtiva luta para sobreviver

Emília Aparecida Diniz Almeida apresentou um caso diferente. A Agrovila Campão Orgânico, onde ela vive, é uma comunidade produtiva. São 200 famílias que tiram sustento da terra, plantando hortaliças, criando galinhas e vendendo ovos. “Do lixo a gente conseguiu produzir. Muitas famílias tiram sustento. Elas vendem galinha, vendem ovos, vendem carne e peixe”, contou.

A comunidade enfrenta dificuldades pela falta de energia regular. Há 50 dias, perderam toda a produção após um corte de energia. “Temos 27 pontos irregulares hoje na comunidade, que são comunitários e de sistema. O pastor perdeu dois porcos. Morreu o porco porque é muito calor, falta de água, não tem como estar fazendo esse tratamento”.

Emília destacou que a Agrovila tem muitas mães solteiras que dependem da terra para sustentar os filhos. “A mamãe não consegue pagar aluguel de três filhos. Então é o produto da terra que faz entrar dinheiro para sustentar a família.”

A comunidade não consegue fazer parcerias com órgãos de apoio técnico porque está em área de ocupação. “A gente não consegue fazer uma nota fiscal, vender com nota, porque a gente não tá regular. Então, hoje a nossa luta, além de moradia, é pela regularização, para nossa produção, para o sustento dessas 200 famílias”.

“Da favela saíram médicos, advogados, cantores”

Leila Pantaleão Silva, da comunidade Lagoa Park, fez um discurso para desconstruir o estigma. “A favela é um lugar de vida, resiliência e sonhos. Apesar do sofrimento, ela também tem muita criatividade e superação. Das grandes favelas do Brasil saíram cantores, atores, advogados e médicos. E também tem as babás, os pedreiros, os mecânicos, os motoboys e a dona de casa. Eles também são grandes porque movimentam a economia do país”.

Leila criticou o preconceito. “Não somos um bicho de sete cabeças. Quando se fala da favela, já se fala: moram bandidos. E não é bem assim. Ali vivem famílias honestas, trabalhadores, gente que carrega o país nas costas, gente do bem, muito mais rica do que muitos que julgam sem conhecer”.

A comunidade Lagoa Park tem três anos e 215 famílias. Já tentaram remover as famílias três vezes. “Resistimos porque precisamos. Hoje estamos aqui para lutar pela moradia digna.”

“Somos humanos igual a todos”

Marvim Willian Sena Alves, das comunidades Vitória e Nova Esperança, trouxe uma fala poética. “O que que nós temos dentro da nossa comunidade? Nós temos idosos, nós temos gestantes, nós temos crianças sorrindo, nós temos gato, cachorrinho latindo, nós temos trabalhador que não quer ser oprimido. Temos casas alagadas, temos barracos de madeira, mas temos dignidade de ser chamado de ser humano”.

Ele pediu para arrancar o preconceito. “O nome é favela, mas somos humanos igual a todos em busca de um só propósito, uma união para poder brigar através do nosso sonho de ter uma casa própria, um lugar digno”.

Lideranças femininas na linha de frente

Valmira Rigotti da Silva, presidente da Associação de Moradores do Jardim Noroeste, falou como mãe e avó. “Falo com alguém que conhece de perto o que é viver sem segurança, o que é viver com incerteza. Dormir bem hoje, mas amanhã a chuva vem ou o fogo desce o morro. A verdade é que o nosso povo não quer esmola. Ele precisa de respeito, quer regularização e exige dignidade.”

Letícia Polidoro, presidente da Associação das Mulheres de Favela de Mato Grosso do Sul, destacou o protagonismo feminino. “A gente tem feito um trabalho desde 2020. Eu falo principalmente das mulheres, que as mulheres têm uma resistência dentro das favelas imensa”.

Vozes da comunidade

O vereador Landmark Rios (PT), autor da audiência, destacou a importância de dar voz ao povo.. “Hoje vocês estão dando voz não para mim, não para uma pessoa, mas para toda a cidade. Esse é o nosso grito de desespero. Hoje nós demos voz para vocês falarem.”

O deputado federal Vander Loubet destacou a dimensão do problema. “Nós temos 20 mil famílias nessa situação em Campo Grande. Nós somos um estado que bate no peito, mas temos mais de 60 favelas. E aí não é culpa de um gestor, é culpa de todos nós”.

Ele cobrou indignação. “Como é que nós, que somos católicos, evangélicos, espíritas, não vamos nos indignar se temos um irmão nosso nessa condição? Na favela tem trabalhadores, tem gente honesta, tem gente que dá duro e que precisa”, declarou o deputado.

Claudineia da Costa, da comunidade Esperança do Noroeste, resumiu o sentimento de muitos. “A gente mora na favela e a gente tá sempre esquecida. Quando tem chuva, perdemos tudo. Agradeço essa oportunidade.”

A audiência pública foi proposta pelo vereador Landmark Rios em parceria com a deputada estadual Gleice Jane (PT). O evento marcou a primeira vez na história de Campo Grande em que o poder público reuniu todas as comunidades para ouvir seus relatos e discutir soluções para a regularização fundiária.

camara.ms.gov.br