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Quem tem medo de Mina?

“Dois sedãs pretos cheios de homens vestindo ternos italianos com um corte impecável, até mesmo para os italianos, rodam pela sinuosa costa de Lugano e chegam à uma villa de três andares, pintada de amarelo siena com acentos brancos. Apesar das janelas sempre fechadas, todos os vizinhos sabem quem mora ali, todos na cidade, no país e no continente sabem.

Os quatro homens descem do carro e são recepcionados por uma empregada solitária, que diz saber do que se trata, oferece-lhes um café e pede que esperem, pois a patroa já está descendo. A dona da casa desce lentamente as escadas, um lenço cobre os seus cabelos, sua altura os impressiona, então ela se senta e ouve os quatro homens repetirem aquela oferta irrecusável pela décima vez: um apartamento em Manhattan e uma conta com crédito inesgotável até que ela se estabeleça, ela responde com um irredutível ‘não’. Eles respondem que seu empregador não aceitaria um não como resposta dessa vez, que ele já estava aposentado há dois anos, dois longos anos em que procurava um sucessor, que ela seria a sua herdeira.

Com um ar melancólico, ela diz não. Então, os quatro homens dizem que se essa era a sua decisão final, ela teria que ligar para ele na frente deles. Ela os olha com curiosidade, tira o telefone do gancho e pede o número, depois de algum tempo “não, eu não posso’. Alguns segundos de silêncio enquanto o outro lado da linha responde de uma suíte em Las Vegas, ‘a oferta é muito generosa, mas eu realmente não consigo’, ela continua com a voz trêmula ‘Sinatra, você é o meu maior ídolo desde menina, mas eu tenho medo de voar’.”

Mina Mazzini, tratada pelo monônimo Mina, é reconhecida como a maior voz italiana do século XX. Quando a Rai afasta Mina em 1963 por ter engravidado do ator Corrado Pani fora do matrimônio, os italianos tomam às ruas de Roma como o fizeram em 313, quando o imperador Constantino proíbe os jogos no Coliseu, até que ela retorne à TV.

Facebook/reprodução

Quem é essa figura hipnótica e transgressiva que consegue deixar um país inteiro de joelhos com a sua voz?

A carreira de Mina nos palcos começa em 1959, então como mais uma das mil urlatrici, literalmente gritadoras, jovens influenciadas pelo rock’n’roll de Elvis Presley, que cantam emulando o estilo americano da época, visto na Itália do lirismo clássico e tradicional como um absurdo musical. Talvez o que a diferencie das demais gritadoras seja justamente sua formação musical dirigida pela avó, que tocava piano e garantiu que a pequena Anna Maria Mazzini participasse de corais e estudasse canto lírico, seu talento natural para oferecer interpretações profundas aliado a voz poderosa que mais tarde lhe renderia o apelido La Tigre di Cremona, apelido complementado por seu visual exótico, seus um metro e oitenta – descalça –, olhar penetrante e cabelos volumosos.

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Ainda em 1960, Mina lança Tintarella di Luna, adaptada no Brasil pelos Mutantes na voz de Rita Lee como Banho de Lua (1961). A cantante também é motivo de um artigo do jornalista Giorgio Bocca, Il Jukebox è troppo stretto per Mina (O Jukebox é pequeno demais para Mina, em tradução livre), que antevê o potencial daquilo que então não passa de um fenômeno da música pop numa Itália que passa pela reconstrução do pós-guerra.

Até 1963 a cantora lança sucesso atrás de sucesso: Nessuno, a balada Il Cielo in Una Stanza, Briciole de Bacci, prova seu virtuosismo vocal e alcance de três oitavas com Brava (1962). O escândalo de 1963 acontece e Mina aproveita a ausência dos palcos e da televisão para se descobrir mãe com filho Massimiliano e se redescobrir como artista.

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Em 1964 Mina retorna com um novo visual, sobrancelhas raspadas, que mantém até hoje, e uma música mais verdadeira a si mesma, gravando o álbum Mina (1964) que junta standards do jazz e swing americano como The Nearness of You, Angel Eyes (onde ela inventa o Triphop) e Everything Happens to Me, o disco também marca a primeira incursão de Mina naquilo que viria ser uma das suas maiores paixões musicais, a música brasileira, com a gravação de Insensatez, em português, vale dizer. O álbum representa uma série de rupturas, a primeira é com a gravadora Italdisc, a segunda é com a forma, essa é a primeira vez que a cantora lança um álbum conceitual com gravações inéditas, não apenas uma compilação de singles, um álbum conceito íntimo, daqueles que fazem até artistas estabelecidos como Sinatra perderem dinheiro, e são no fundo uma concessão artística equilibrada pelas compilações e shows. Pelo contrário, o disco é um sucesso de crítica e comercial, ganha o Oscar Del Disco e fica em terceiro lugar nos charts do ano.

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O retorno ao elenco do programa Studio Uno da Rai também lhe rendeu dois álbuns homônimos cheios de superhits como Città Vuota, versão de It’s a Lonely Town; Studio Uno 66 trás Mi sei scoppiato dentro il cuore e a excelente faixa Se Telefonando, com arranjo de ninguém menos que o brilhante compositor Ennio Morricone. Se esses álbuns de compilações de sucesso indicam uma certa complacência, Mina responde com o seu segundo álbum conceito Mina 2 (Mina due em italiano), onde volta ao repertório jazzístico com um tom fitzgeraldiano e volta a fazer covers de seu grande ídolo, Sinatra, que, segundo a lenda, já tentava convencê-la a fazer um série de shows nos Estados Unidos nesta época. Se não deu certo, ao menos ganhamos o magnífico Sinatra-Jobim no começo de 1967.

A aproximação com a música brasileira foi ganhando cada vez mais força e resultou em Mina Canta o Brasil (1970), um disco de uma fã apaixonada, começa com Canto de Ossanha e termina com Nem Vem Que Não Tem de Simonal — só isso —, duas canções que ela já adaptara para os palcos italianos como Che dice non dà e Sacumdì, sacumdà em 1968 e 1969, respectivamente.

Em Mina (1971), outro álbum conceito, a cantora prefere não mostrar o rosto na capa e escolhe uma foto de arquivo de uma macaca filhote, a tendência de usar o mesmo nome em vários discos faz com que o público italiano passe a chamá-lo de “álbum da macaquinha”. É aqui que são revelados hits como E Penso a Te e Grande, Grande, Grande, nessa última a voz poética reclama do amante patético e egoísta, que no momento justo se torna gigante e faz com que todo resto já não importe mais. Em sua generalidade, a canção consegue tocar qualquer um que já sofreu ou viu alguém próximo sofrer de amor por um babaca charmoso. Shirley Bassey, Julio Iglesias e a nossa Marrom, a Alcione gravaram versões da música.

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Parece que o começo dos anos setenta relembrem o mundo do talento de Mina, Cinquemilaquarantatre (1972) traz aquele que talvez seja o seu maior sucesso: Parole, Parole, um dueto que foi imortalizado em 1973 pela versão da diva francesa Dalida e Alain Delon, o homem mais bonito do mundo; in terra brasilis a versão foi feita pela imortal Maysa e Raul Cortez, um pouco menos belo que Delon. O número de versões produzidas transformaram Parole, Parole em um verdadeiro standard, ainda que na maioria das vezes a autoria seja creditada a Dalida.

Ainda em 1972 Mina apresenta o show que será o protótipo de sua aposentadoria e seria imortalizado na gravação ao vivo em Dalla Bussola. O show é reminescente das apresentações naturais de Sinatra no Sands, com uma pitada da teatralidade de Judy Garland. Ela abre o show com Fly me to The Moon, passa pela melodramática Io Vivrò Senza Te, homenageia Edu Lobo com Laia Ladaia, sua versão de Reza, e tem seu apogeu com Someday (You Want me to Want You).

Apenas seis anos depois, Mina retornaria ao La Bussola em 20 de agosto de 1978 para se despedir dos palcos no maior estilo, com cabelos à la Bethânia, em um show que rememora seus grande sucessos, influências e dialoga com seus contemporâneos.

Sua interpretação de Staying Alive parece ser uma piscadela aos fãs dizendo algo como ‘não é o fim’; Lacreme Napulitane é um retorno às suas origens na música leggera italiana, Città Vuota é reinterpretada com um novo arranjo, Georgia On My Mind trás a atmosfera jazzistica à tona; em algo que parece um truque de mágica, Mina consegue transformar We Are The Champions em um mero degrau para o seu clímax: Grande, Grande, Grande, ao fim é ovacionada pela plateia que repete o seu nome em uníssono. Assim acaba a carreira de Mina nos palcos. A gravação do show é lançada simplesmente como Mina Live ’78, se tornou um sucesso cult e entrou para a lista dos dos cem melhores discos italianos de todos os tempos Rolling Stone.

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Sua despedida da vida pública inclui a última entrevista que a cantora deu até hoje, na noite de 24 para 25 de junho as DJs da Rádio Taranto conseguem roubar a cantora depois do primeiro show da última turnê, onde Mina diz que não tem medo de envelhecer musicalmente:

“Só eu faço o que faço, e se dá certo está tudo bem, e se não dá é ‘muito obrigado e tchau’, foi tudo muito divertido, mas a minha vida, minha vida de verdade, é outra. […] sou uma cantora popular, o público é lindo, muito mais lindo do que o que eu faço. A emoção de verdade, a emoção violenta vinha deles, não de mim.”

A entrevista toda tem um tom já distanciado, os entrevistadores não usam “você”, perguntam sempre falando de Mina como uma pessoa que já foi ou está em outro lugar. A entrevista, que a cantora diz gostar “porque é honesta, como eu sou”, separa a persona dos palcos da Mazzini, que é quem está ali no estúdio, a impressão que se tem é que Mina está morta e enterrada, que aquilo é definitivo.

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Ledo engano, os primeiros vinte anos nos palcos foram trocados por uma vida longe do escrutínio da imprensa em sua casa em Lugano, onde continuou a gravar e produzir álbuns cada vez mais experimentais, passando por Kyrie (1980), onde a liturgia é usada como base uma das músicas, Rane Supreme (1987) que é aberto por uma versão de Careless Whisper e flerta com os ritmos e sintetizadores dos anos 80, um distanciamento indicado pela imagem da capa em que sua cabeça é superposta a um corpo musculoso; Mina Canta i Beatles (1993), uma homenagem aos gigantes do rock inglês; e L’allieva (2005) – a aluna –, um álbum inteiro dedicado ao songbook de Sinatra, seu grande mestre, com quem compartilha a fama de ter gravado mais de 1500 músicas. Os quase cinquenta anos de carreira fora dos palcos revelam uma artista madura, com um domínio musical absoluto e nenhum medo de experimentar, só medo de voar.

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É verdade que a carreira prometida por Sinatra na América a teria transformado na maior artista do século, que o medo de voar era uma desculpa esfarrapada, Mina tinha medo mesmo do star system americano, muito mais nefasto que o italiano, que já havia virado sua vida de ponta cabeça, ela não precisava disso.

Hoje, aos 84 anos, vive em sua confortável reclusão, aparece vez ou outra nos tabloides como se fosse parte da família real inglesa. De casa, escreve para Vanity Fair, grava os álbuns que lhe interessam com o filho que é seu produtor, empresta à voz a artistas mais jovens como Blanco e Mark Ronson. Faz tudo isso protegida da mídia, tão fascinada por essa criatura enigmática e paradoxal, esse bicho que para ser livre tem que se isolar.

Um amigo napolitano que passou duas temporadas no brasil confessou: “é incrível, na Itália ela é um lugar comum, no Brasil quase ninguém a conhece, e quem conhece tem uma devoção quase religiosa,” e é com esse espírito que convido o leitor a escutar a obra de Mina e o seu novo álbum, Gassa D’amante, lançado neste mês.

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