Episódio 45
Carta inédita de Machado de Assis
(Todos os direitos reservados para Sambation Press)
Sou o teu único risco
Rio de Janeiro, 10 de abril 1906,
“Querida C.
Tu queres mesmo saber como fiz, e por que fiz isso?
Não o faria se pudesse ter a certeza de que seu amor, ou paixão, já que é assim que os engenheiros do desejo chamam a atração que vocês exercem sobre nós, fosse de fato insofismável.
Tu sabes por que, a despeito de isso ser chamado de diário, há somente uma única carta nele? É proposital. Sim, sou calculista. Calculista, veja bem, quando se trata de me defender.
Se queres uma resposta objetiva é porque não acredito em diários. Nem na objetividade. Tais coisas inexistem. Eles, os diários, não deveriam existir. Bronte fez, Montaigne fez. Dizem que Flaubert queimou o seu quando teve a genial ideia de fazer seu livro sobre o nada. Digo e reafirmo, se existem, devem ser queimados.
Queimemos, sem dó. Queimemo-los porque eles são o incêndio.
Quanto à objetividade, ora, nessa creio menos ainda. A realidade, o grande clamor daqueles que preterem a imaginação e desejam uma história asseptica, estes, minha cara, nada entenderam, nem da vida, muito menos da natureza do amor. Não sabem que a existência flue do vitalismo e trava quando é tomada como a mesquinharia mecanicista.
O peso dos anos sobre mim, que vinha no gotejamento, do dia a dia, como pequenas ondas insossas, agora vem sao modo de grandes massas d’água. Cada dia é um vagalhão a me inundar, querida C. Mesmo assim o que sinto é tanto inegável como irremovível.
O privado é o sagrado que Estado algum jamais poderá nos conceder. Já os livros…Diários e as missivas exprimem o que não se quer repartir. É o que preside essa intimidade inviolável é algo tão sagrado, mas tão sagrado que poderiam sem esforço proselitista ser entronizados como objetos de culto.
E veja bem, não se trata de copiar o admirável povo do livro.
O diário é um soliloquio esotérico, um artefato de veneração e autoinstrução, e em meus sonhos menos provincianos — decerto eu sou acometido por eles — temo que o Criador tenha, pessoalmente, destruído o seu. Sim, ele o destruiu, assim que arquitetou este mundo. Existem registros da cartografia anímica que não devem ser divididos com ninguém. Tu sabes bem disto, estou errado, C?
Nem mesmo com quem se ama, ou especialmente com elas ou eles.
E, a bem a verdade, admitam, quem se interessaria pelo cotidiano de um escritor o qual, destarte teve que colocar sua pena a escrever quase que compulsivamente, não consegue se concentrar um segundo num outro tema que não seja tua presença? Tua presença que consta em todos os tribunais do desejo, e sobre os quais nunca ouvi uma simples quebra de ritmo.
Bem que o meu irmão de alma e genial editor Paula Britto quis, mas não tive coragem de colocar o nome do verdadeiro autor naquele livro, livro não, aquilo era bem mais um livreto, um opúsculo. E, como nos arguimos através das longas madrugadas de chá e tabaco pesado antes de bater o martelo. Eu, com minhas homeopatias de eleição, ele com suas bebidas fumegantes. O que posso confessar, digo mencionar, já que não me agradam nem confissões nem juras? Em uma única sentença se há algo peremptório é que fomos amigos sem fim.
Victor Henaux não mereceria isso, mas tampouco eu merecerei a alcunha de plagiador. Posso escrever mil das histórias que agora acabamos de mandar para o typo. Eu não o quis por vários motivos, em primeiro lugar este era um daqueles livros pelos quais um homem deixará de ser desejado. Porque, ou será tomado por um zoilo, ou porque será alfinetado pelas senhoras toda vez que aparecer um boneco de pano para engendrar o maleficio. Não poderia permitir que isso me ferisse assim.
Querida C. nada trocaria pelo estável prazer de me ver junto a ti. E vai uma notícia que pode ou não ser surpresa: Henaut não estava errado ao afirmar, é verdade que em tom de denúncia, a queda das mulheres pelos tolos que apontou. Quão feliz seria se tivesses uma queda por este que vos escreve (a bem dizer que nunca conhecerás esta confissão). Não estava errado porque o que faz o casal ser o que é, constitui-se em uma certa assincronia de estatutos. O casal é feito dos retalhos das diferenças. Por isso, eu não conseguiria, como já fiz em conversas privadas, recriminá-lo e fazer-me de juiz num tribunal defectivo e parcial.
As mulheres querem o tolo e tem razão em querer o tolo, mas reparem de qual tolo estamos falando. Não é, como poderia parecer – e como Victor Henaux talvez pensasse de verdade – que há uma oposição entre o homem de espírito e o tolo. Aliás, o que faz o homem de espírito que faz inveja ao tolo?
O sujeito de espírito é um esteta escrupuloso, e isso basta para que ele tenha a célula do isolamento. Não é misantropo, apenas rigoroso com o que deseja ouvir. E, sendo um ourives da escuta, peneira até a última areia o que deseja ou não ouvir. O tolo, bem, este tem outras prioridades. Trata-se de um tolo como um sujeito perdido, um tolo mergulhado não na concupiscência, nem nos sedutores que se espalham da península do senso comum aos continentes áridos cheios de deserto de pensamentos, são, sobretudo uns tremendos chatos. Isso mesmo, chatos. Chatos que não conhecem o poder múltiplo e com função sossegadora de uma amizade feminina. Não tem ideia de que ter uma mulher como interlocutora supera tudo em matéria de deleite. Deleite, não, exultação. Falo sem um pingo de exagero. E quando falo do homem de espírito, falo daquele que alcança comutar toda sua superficialidade em pureza. Exatamente o oposto de um tolo, aceitas?
É esse o tolo que deveras precisa ser considerado.
Sei que, e espero que a ofensa não seja dominante em ti, a atração que o feminino mostra pelo homem sem virtudes, aquele que transforma tudo que toca, como um Midas sem critério, em puro preconceito e ode a Narciso.
Pois, o que há no néscio, senão vaidade?
Tu que já mostrou pequenos indícios de que o amor não tem pé nem cabeça,
Amada C. sabes do que falo, não?
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No Episódio,47 – Fim da novela “Términos Inacabados” : A segunda Carta Inédita de Machado de Assis.