Era por volta de 4h de 17 de agosto de 2008, um domingo. Curiosamente, tratava-se da mesma data em que é comemorado o Dia do Patrimônio Histórico Nacional . Naquela madrugada, o porteiro Euzebio Marcos estava na Rua Nestor Pestana, 196, na região central de São Paulo, onde está localizado o Teatro Cultura Artística , na rua detrás da movimentada e boêmia Praça Franklin Roosevelt. Euzebio, que trabalhava no Teatro, sentiu um cheiro forte de fumaça vindo de um dos andares superiores. Ele resolveu verificar o que poderia ser, sem imaginar a dimensão do problema. Quando chegou ao segundo andar, onde ficava o enorme teatro da sala Esther Mesquita, constatou o pior: o lugar estava em chamas.
Em poucos instantes, a situação parecia irrecuperável. As chamas alcançaram 20 metros de altura. O teto do teatro desabou, e a sala abaixo, Rubens Sverner, de 339 lugares, também foi destruída. Toda a estrutura do teatro ficou comprometida e parecia o fim do Teatro Cultura Artística. Até mesmo os prédios ao redor precisaram ser evacuados devido à fumaça. O famoso mural de vidro de Di Cavalcanti (1897-1976), “Alegoria das Artes” , que ocupa a fachada, sofreu estilhaços devido ao calor. Foram 18 meses para o restauro da peça, que atinge 48 metros de comprimento – a maior já criada pelo artista.
Naquele dia, a Orquestra Filarmônica de Liège , que se apresentaria ali, precisou ser transferida para o Teatro Municipal de São Paulo . Não era hábito do Cultura Artística cancelar suas atividades, e não seria exceção nem mesmo naquela situação. Já as temporadas das peças “O Bem-Amado”, com Marco Nanini , e “Toc Toc”, comédia do francês Laurent Baffie , foram imediatamente interrompidas. Após as chamas serem apagadas, descobriram que pouco foi preservado.
Ninguém sabia o motivo do incêndio e até hoje não se sabe a causa principal. A previsão, informada aos frequentadores do local, era de que o novo teatro reabriria até 2012. Um erro que teve uma margem de 12 anos de diferença.
Finalmente, em outro domingo, em 25 de agosto de 2024, o espaço reabriu após uma reforma de R$ 150 milhões. Abençoado com as “Bachianas Brasileiras I”, de Heitor Villa-Lobos (1887 − 1959), o novo ambiente foi inaugurado, e a audiência saudou o retorno, ou melhor, uma nova era de um dos teatros mais tradicionais de São Paulo.
O novo Cultura Artística
Frederico Lohmann , diretor-executivo do Teatro Cultura Artística há 13 anos, que é também pianista, explica que após o incêndio foi feito um estudo, em parceria com a TPC (Theater Project Consultants), a respeito das possibilidades que o novo espaço poderia abarcar, levando em conta o contexto cultural da cidade e o histórico do teatro.
“Pensamos muito no que o Cultura Artística fez ao longo da sua história, que tipo de espetáculos essa sala tinha abrigado ao longo da sua história. E a resposta para essas perguntas é o que vemos aqui: é uma sala pensada para a música . Seria uma sala de recitais, não só de música clássica, mas de todos os elementos sonoros que estão acontecendo, incluindo apresentações de jazz, música popular e música eletrônica. Esse seria o espaço ideal para esse tipo de performance” , afirma o gestor do Teatro Cultura Artística sobre a mudança no perfil do ambiente, que antes acolhia, especialmente, espetáculos teatrais.
A arquitetura do teatro foi concebida pelo arquiteto Rino Levi nos anos 1950. O espaço atual foi planejado com duas salas de espetáculos (com 750 e 150 lugares), além de salas de aula, estúdios e espaços de práticas. Na entrada, há ainda a charmosa livraria Megafauna , tornando o espaço ainda mais convidativo. No plano de restauração, descobriram que a cor original da sala de apresentações era amarela, e decidiram aplicá-la novamente nas paredes do espaço.
“Era algo que a cidade de São Paulo não tinha. O Cultura Artística preenche uma lacuna na vida cultural da cidade. No entanto, o desafio é que as performances estão se tornando cada vez mais diversificadas. Portanto, decidimos que o espaço será muito focado na música, embora, no futuro, possamos abrigar também outros tipos de apresentações”
Frederico Lohmann
Um dos propósitos do projeto atual do teatro foi recuperar parte da arquitetura de Rino, mas não sem as devidas adaptações. As portas de entrada da sala de espetáculos permanecem as mesmas de antes, mantendo a experiência tradicional do público ao entrar no espaço. Os foyers do térreo e do primeiro andar foram algumas das poucas áreas intactas.
Internamente, a sala de concertos foi completamente transformada, agora com câmaras acústicas e com acessibilidade, eliminando as antigas escadas. A finalidade agora é enriquecer a experiência auditiva das salas. A artista Sandra Cinto foi contratada para planejar uma instalação para o teatro. Até mesmo ali, o projeto acústico foi cuidadosamente pensado: sua obra traz elementos como o formato dos degraus nas paredes, que ajudam a distribuir o som, evitando reflexões paralelas. Sandra também projetou duas enormes tapeçarias, posicionadas no novo foyer do teatro.
“O próprio desenho da sala começou no palco. Fizemos, junto com os acústicos, a plotagem de mais de 20 formações de músicos diferentes, dependendo do tipo de espetáculo. Ele foi cuidadosamente desenhado para acolher os tipos de espetáculos que imaginamos aqui, enquanto mantivemos o máximo possível de instalações cênicas para que outros tipos de espetáculos, não necessariamente musicais, também possam ser realizados” , explica
Outra novidade é um foyer de vidro, de três andares, que dá vista para a Praça Roosevelt, com o intuito de conectar ainda mais o teatro com a área urbana.
Um dos principais investimentos da casa de espetáculos se deu na aquisição de instrumentos musicais. Para isso, contaram com a expertise do pianista canadense Jan Lisiecki , que se apresentou em um dos concertos de reinauguração do teatro. “O som de dois pianos nunca é idêntico um ao outro, por isso levamos um pianista e um técnico para fazer a escolha. Fizemos uma visita a uma sala com 60 pianos, dos quais 20 eram Steinway Grand Concerto modelo B, apropriados para grandes salas de espetáculo” , explica o diretor-executivo.
A visita ocorreu na fábrica da renomada marca Steinway & Sons, em Hamburgo, na Alemanha. “O pianista testou os seis pianos que o técnico da Steinway havia pré-selecionado para nós. Esse técnico, de nossa confiança, é o diretor da Steinway Londres. Ele comentou: ‘Acho que temos três ótimos candidatos’. O Ian experimentou os seis pianos e escolheu um dos três que ele havia mencionado.”
Outra boa novidade é que, além da curadoria de espetáculos musicais, o Teatro investe na formação musical da nova geração. “O programa foi criado para apoiar músicos em início de carreira, considerando a dificuldade desse momento, especialmente no Brasil. Focado em jovens de 16 a 26 anos, o programa oferece um plano de desenvolvimento personalizado, incluindo aulas particulares, cursos de idiomas, apoio financeiro e logística para participação em competições internacionais. As instalações incluem salas de estudo e uma midiateca equipada, permitindo que os alunos façam suas atividades acadêmicas e musicais em um mesmo espaço. Além disso, há um incentivo à formação humanística, com cursos de literatura oferecidos no Cultura Artística.”
Legado de 110 anos
O Teatro Cultura Artística, com 110 anos de história, tornou-se um grande pilar da cena cultural de São Paulo. Fundado por figuras proeminentes, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade , o teatro foi um ponto crucial para as discussões que antecederam a Semana de Arte Moderna , promovendo eventos que se tornaram referenciais na cultura brasileira.
Na sua trajetória, o teatro teve um papel fundamental na música, especialmente com a criação da primeira orquestra profissional da cidade, a Orquestra Sinfônica de São Paulo , idealizada por Dona Esther Mesquita , em 1974. Esta orquestra, que estreou obras inéditas de compositores como Camargo Guarnieri , contribuiu – e ainda contribui – para a valorização da música brasileira.
“Até então, não havia nenhuma orquestra profissional em São Paulo, e foi por isso que foi criada a Orquestra Sinfônica de São Paulo. Contudo, o Cultura Artística não pôde manter a orquestra, que foi transferida para o Teatro Municipal alguns anos depois. Essa mesma orquestra está ativa até hoje e está ligada à fundação da Orquestra Sinfônica Municipal” , conta Frederico Lohmann.
A construção do teatro, dos anos 1950, contou com supervisão de Dona Esther e do planejamento do arquiteto Rino Levi, como citado anteriormente. Após inaugurado, ele foi tido como uma das mais modernas da América Latina na época. Além disso, o teatro influenciou gerações de músicos e ampliou sua importância na cena teatral paulistana. “É comum encontrar músicos que decidiram se tornar profissionais após frequentar e assistir aos eventos promovidos pela Cultura Artística” , ressalta Lohmann.
Para ser reerguido, o Teatro Cultura Artística angariou recursos por meio de mais de 800 doações. A maior parte dessas contribuições foi viabilizada com incentivos fiscais da Lei Rouanet , conforme relata o diretor-executivo. “O maior doador contribuiu com apenas 10% dos recursos. As doações foram, portanto, muito pulverizadas, o que demonstra um grande engajamento da sociedade civil com a instituição. Temos inúmeros casos de pessoas que, a cada ano, doavam um pouco porque acreditavam no projeto.”
Ele explica que o espaço possui gestão compartilhada, que inclui diretores e conselheiros. “Temos diversos diretores, e eu colaboro com a diretora artística. Parte do meu trabalho consiste em aprimorar a governança, garantindo que a Cultura Artística opere com excelência. O planejamento é realizado em conjunto.” Para o gestor, a Lei Rouanet foi fundamental não apenas na construção, mas também será na preservação e dinamização da programação do teatro. O uso de recursos provenientes de assinaturas e vendas de ingressos também é vital para a sustentabilidade da instituição. Viva o novo Teatro Cultura Artística!
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