sábado, 4 de janeiro de 2025

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Como Luca Guadagnino transpôs o livro “Queer” para as telas

Sempre que o diretor italiano Luca Guadagnino se prepara para produzir um novo filme, parece inevitável que ele busque superar o tratamento estético de suas obras anteriores. Essa sensação se reafirma ao assistir ao seu mais recente longa-metragem, Queer, uma adaptação do romance de William S. Burroughs, publicado em 1985. De todas as suas obras-primas, Queer é, definitivamente, a mais bela — pelo menos no que se refere à direção de arte e fotografia do filme. A narrativa, no entanto, é marcada pela melancolia.

O livro, escrito entre 1951 e 1953 e publicado somente na década de 1980, é considerado uma obra semi-autobiográfica de Burroughs. A trama reflete suas experiências no México pós-Segunda Guerra Mundial, abordando temas como isolamento, vícios e desejos reprimidos. A história segue Lee (interpretado por Daniel Craig no filme), um homem gay deslocado e emocionalmente confuso. Nos primeiros minutos do filme, acompanhamos o personagem indo de bar em bar em busca de companhia até encontrar Eugene Allerton (Drew Starkey), um belo jovem americano. Lee se vê obcecado por ele, mas não sabe se Eugene é ou não queer. Os dois se encontram de maneira casual, mas Eugene se mantém frio e distante, o que intensifica o interesse de Lee.

© 2024 The Apartment S.r.l., FremantleMedia North America, Inc., Frenesy Film Company S.r.l. All Rights Reserved./divulgação

Embora Lee explore abertamente sua sexualidade, o filme revela o quanto ele é uma figura isolada e marginalizada no ambiente em que vive. Sua mudança para a Cidade do México é motivada pelo vício em heroína, que lhe causou conflitos com a justiça nos Estados Unidos. A relação que ele estabelece com Eugene é um reflexo de seu vício, misturando desejo profundo e dependência.

Luca Guadagnino explora o conceito de espetáculo em toda a sua potencialidade. Os ritmos, as imagens, os objetos, as cores e a trilha sonora são meticulosamente selecionados para envolver o espectador, criando uma sensação de uma obra de arte em movimento.

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O interesse de Luca pela adaptação do livro surgiu logo que entrou em contato com ele, ainda na adolescência, quando morava em Palermo, na Itália. “Assim que comecei a ler o romance na solidão do meu pequeno quarto, tive uma epifania sobre os mundos ali evocados e a linguagem com a qual foram descritos. Também reconheci algo muito familiar, algo íntimo: o autor deu vida a essa sensação vertiginosa que eu não conseguia expressar em palavras, a sensação de contato visceral com alguém que, no fim das contas, transforma sua visão de mundo.” Luca compartilhou esse sentimento em uma entrevista à revista World of Interiors. No entanto, nem tudo no filme segue a risca o que está no livro, há uma boa dose de licença criativa. Lee, por exemplo, é mais jovem que Daniel Craig (56 anos), e ainda não completou 40. A escolha de um ator mais velho amplifica o sentimento de isolamento do personagem, que busca, desesperadamente, a beleza, a juventude e, em certo ponto, o pertencimento.

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© 2024 The Apartment S.r.l., FremantleMedia North America, Inc., Frenesy Film Company S.r.l. All Rights Reserved./divulgação

Antes de sua estreia, o filme foi amplamente discutido devido às suas supostas cenas de nudez e sexo. No entanto, essa ênfase parece mais uma estratégia de marketing ou, no pior dos casos, um equívoco. O que realmente se vê na tela é que esses elementos permanecem em segundo plano, aparecendo apenas em alguns poucos momentos, com um impacto bem mais contido do que se imaginava. Em um dos encontros entre Lee e Eugene, é tocante ver o protagonista finalmente conquistar o objeto de seu desejo. A paixão que Lee sente é tão intensa que transborda na tela, criando uma sensação quase palpável de aflição e desespero. A cena é tão verdadeira em sua representação da experiência de estar apaixonado que é capaz de nos levar às lágrimas. Nesse ponto, ele nos faz lembrar do amor adolescente retratado em “Me chame pelo seu nome”.

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Em um gesto quase desesperado, Lee convida Eugene para uma viagem pela América do Sul, onde busca uma planta com poderes telepáticos, a Ayahuasca. Ele vê nisso uma tentativa de se conectar mais profundamente com a mente de seu amado. No filme, essa jornada, acompanhada pelos delírios dos personagens após o consumo do chá, é um dos momentos mais intensos, desvelando camadas emocionais e psicológicas extremamente complexas.

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© 2024 The Apartment S.r.l., FremantleMedia North America, Inc., Frenesy Film Company S.r.l. All Rights Reserved./divulgação

A obsessão de Luca pelo livro de Burroughs, assim como o protagonista de Burroughs, atravessou várias décadas (33 anos, para ser exato), até que ele finalmente adquirisse os direitos e se sentisse preparado para levar as páginas à tela. E ele o faz com notável destreza, sendo ao mesmo tempo fiel ao material e habilidoso ao sugerir imagens complementares, com poesia e visões que o livro não oferece.

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A estética do filme, que possui uma personalidade lúdica, reflete a visão de Luca sobre como a obra deveria ser abordada. “Outra necessidade era que o mundo descrito por Burroughs tivesse que ser encenado como um lugar artificial – uma projeção da total imaginação do autor, em vez de um ‘drama de época’. Estabelecemos o ambicioso plano de misturar uma pesquisa histórica precisa dos locais mencionados no romance com uma compreensão profunda e emocional da mente e do coração de Burroughs.”

No filme, tudo parece estar meticulosamente alinhado com os sentimentos do personagem, criando um impacto profundamente sensível. Isso se confirma quando Luca compartilha suas escolhas de ambientação. “Optamos por elementos visuais que amplificassem tanto o isolamento dos personagens quanto a conexão entre eles, criando espaços que carregam um duplo significado: a troca de olhares e reflexões, a permeabilidade e o encontro de duas almas. Há uma simetria intencional, um jogo de refrações e espelhos. Por exemplo, uma das locações, a taberna mexicana de Lola, foi transformada em Chimu, um clube gay, simplesmente removendo o pilar central, criando um vazio no lugar de algo anteriormente preenchido.”

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© 2024 The Apartment S.r.l., FremantleMedia North America, Inc., Frenesy Film Company S.r.l. All Rights Reserved./divulgação

Queer estreou nesta quinta-feira nos cinemas, pouco tempo após o sucesso de Rivais, e ajuda a consolidar Luca Guadagnino como um dos diretores mais interessantes tanto em termos estéticos quanto narrativos na atualidade. Ah, e há uma feliz surpresa no início do filme, com a participação do ator brasileiro Henrique Zaga, irreconhecível no papel de Winston Moor, um desafeto de Lee.

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