segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Rádio SOUCG

  • ThePlus Audio

Biografia de Albert Camus explora as contradições do autor

A nova edição de Albert Camus: Uma Vida , escrita por Olivier Todd e publicada pela Editora Record, traz um olhar aprofundado sobre a complexidade do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), vencedor do Nobel de Literatura em 1957. Baseado em cartas pessoais, gravações inéditas e entrevistas com familiares, amigos e amantes, o livro revela aspectos íntimos e contraditórios de Camus, desde seu charme e sinceridade até sua insegurança e arrogância.

Albert Camus Editora Record/divulgação

A publicação detalha sua trajetória, das origens proletárias na Argélia à consolidação como um dos principais intelectuais do século XX, abordando a luta contra a tuberculose, a pobreza e as polêmicas políticas que marcaram sua vida. A narrativa é ambientada em contextos históricos cruciais, como a ocupação francesa no norte da África e o cenário cultural da Paris pós-guerra, incluindo suas tensões com Sartre e outros intelectuais.

Com 882 páginas, a edição atualizada apresenta um novo projeto gráfico e um encarte exclusivo com digitalizações de cartas e imagens inéditas.

biografia-albert-camus-olivier-todd-record-livro-vida-filosofo
Alber Camus: uma vida, de Olivier Todd Editora Record/divulgação

Leia abaixo um trecho da obra Albert Camus: Uma Vida (Editora Record) :

Continua após a publicidade

Matrícula 17.032

“As vindimas em St-Paul terminaram hoje de manhã, às 10 horas”, escreve com tinta roxa Lucien Auguste Camus. Uma vindima é preparada como uma campanha militar. Lucien Camus contempla seu campo de batalha:

“Acho que ultrapassaremos os 10.000 hectolitros […] .-..-..-..-..”. Para ornamentar suas frases, ele utiliza a pontuação. Escreve esta carta em 22 de setembro de 1913 – “às 12h30 da noite”, ele sublinha duas vezes – na fazenda de Saint-Paul, 304 hectares perto de Mondovi, no Constantinois. Dirige-se ao sr. Classiault, seu correspondente da firma Jules Ricôme et Fils, negociantes e exportadores de vinhos, equivalente dinástico em Argel, assim como os Lung, dos Chartrons de Bordeaux. Argel fica 420 quilômetros a oeste de Mondovi. Às duas horas da madrugada – ele anota – Lucien Camus faz suas contas. Letra inclinada, maiúsculas graúdas, as missivas do adegueiro são escritas em papel timbrado, com cabeçalho Domaine de Saint-Paul, Vve Chaubardde Beringuier, propriétaire.

Adegas, cubas, prensas, bombas de mosto e vinho da fazenda Saint-Paul erguem-se na frente do domínio do Chapeau-de-Gendarme. Entre os dois, cortando uma planície, a rodovia nacional liga o burgo de Mondovi à cidade de Bône – onde viveu Santo Agostinho. Durante a conquista, sapadores militares implantaram o acampamento de Mondovi no lugar chamado Dréan. A fronteira do protetorado tunisiano corre cerca de quarenta quilômetros a leste.

Antes da chegada dos franceses, os Rouama, Bône chamava-se Annaba. Política de “afrancesamento”, de civilização, segundo os documentos oficiais, os aglomerados tinham agora nomes franceses. Ou pelo menos de vitórias, como Mondovi. Esse batismo administrativo pelos nomes sacramentou compras a preços baixos, expropriações ou roubos de terras coletivas árabes ou cabilas. Uma estrada de ferro de via única corre paralela à estrada Mondovi–Bône. A fazenda Saint-Paul e o domínio Chapeau-de -Gendarme estão sob a dependência do cantão de Mondovi, mas colados às construções do vilarejo de Duzerville.

Continua após a publicidade

Numa outra carta, o adegueiro explica a Classiault o que ele, Lucien Camus, disse ao sr. Bérard, gerente do Chapeau, que, doente, se sente ameaçado: “Ele me perguntou que missão eu deveria cumprir no Chapeau; eu lhe respondi que tinha de me ocupar da Adega Chaubard e na mesma ocasião daria uma ajuda no Chapeau.” Camus trabalha para Saint-Paul e para o Chapeau-de-Gendarme – filial da Sociedade das Fazendas Francesas da Argélia e da Tunísia –, que fornecem vinho para Ricôme. Ele mora em Saint-Paul, numa casa baixa, de chão de terra batida, com dois cômodos e uma cozinha encostados na adega.

O uádi Seybouse serpenteia a algumas centenas de metros. Lucien Camus não tem tempo para pescar enguias ou barbos. Verdes, ruças ou nuas, as vinhas ondulam quase até o maciço de Edough e suas florestas de sobreiros. O Guide bleu indica aos turistas que, no Constantinois, “os indígenas pululam”, acolhedores. A Argélia consiste então em três departamentos franceses e uma colônia de povoamento, dirigida por um governador-geral.

O recenseamento de 1911 registra 752.043 “não muçulmanos” e 4.740.526 “muçulmanos”: seis vezes mais “indígenas” do que europeus “de origem”.

Nascido em 1885, em Ouled-Fayet, departamento de Argel, Lucien Camus descende dos primeiros franceses que chegaram. Nem colono nem proprietário, mas assalariado, na França ele seria contramestre. Não possui nenhuma das sessenta mil ações do Chapeau-de-Gendarme. Em outros tempos, foi agenciador e comboieiro.

Continua após a publicidade

Na produção de vinho, reinam na cúpula os proprietários. Depois vêm o gerente, chefe de cultivo, que supervisiona as vinhas, e o adegueiro, que trabalha as uvas após a colheita. Enladroamento, poda e vinificação são privilégio dos brancos pobres. Fala-se de um “indígena” adegueiro em Randon. Os trabalhadores moram em torno das propriedades. Tendas confinam com cabanas de tábuas. Os jornaleiros pertencem muitas vezes às gloriosas tribos da província, Bei Salah, Drides, Oualassa. Os detentos empregados voltam para a prisão à noite. Europeus e árabes trabalham juntos. São poucos os contatos sociais, a não ser no bordel de Bône. Caso excepcional, em Mondovi, o ferreiro-segeiro Marchieccha converte-se ao islã e casa-se com uma argelina. Os colonos falam dos indígenas, dos muçulmanos, às vezes dos árabes, raramente dos cabilas.

Lucien Camus recomenda a Classiault um empregado que deseja passar de Saint-Paul para o Chapeau-de-Gendarme: “O homem chamado Rabad Oustani que eu tinha na filtragem à noite deixou a propriedade há alguns dias com a intenção de trabalhar na casa, pois antes de ir embora me perguntou o nome da Casa. Não achei que devia lhe recusar, ainda mais porque ele me prestou grandes favores enquanto duraram os trabalhos. Na minha opinião é um excelente trabalhador que poderia dar certo se o senhor o julgasse adequado.” E acrescenta: “É de acreditar que ele [Oustani] tem, apesar de ser um indígena, muito mais civilidade do que o indivíduo abominável que o incitou a sabotar a filtragem durante a noite e por se recusar depois ele foi obrigado a ir embora.”

Trinta e oito graus à sombra, o verão de 1913 foi rigoroso. “Os passarinhos se calavam”, anota o adegueiro, com propriedade. “Com o calor que faz, aquele vinho tinha um gosto de charco aquecido.” Lucien Camus luta contra o siroco e “granizos como ovos de pomba”. Antes da vindima, preocupava-se com a sujeira das cubas; durante a vindima, com a fermentação; depois, com a limpeza dos recintos. Seus vinhos tintos terão, talvez, um teor de 12°. Não extrairá vinho rosê de sua cepa de uvas grenache. Ao chegar alguns meses antes a Mondovi, Lucien Camus aferra-se ao trabalho. O suco branco da uva sainson, que dá vinho tinto, ou o tibouchi vermelho-sangue, mais claro, são conhecidos. Em Saint-Paul, ele também produz uvas de vinho de mesa: a chasselas madeleine amadurece antes da moscatel.

Em setembro de 1913, Lucien Auguste Camus, vinte e oito anos, espera sua mulher grávida e seu filho, Lucien Jean Étienne. Olhos azuis, cabelos e sobrancelhas castanhos, fronte exposta, boca mediana, Camus pai tem bigode. Segundo os médicos militares, ele tinha 1,68 m, boa altura para um homem na época. Soldado de segunda classe, marchou com o primeiro regimento de zuavos no Marrocos, em torno de Casablanca, em 1907 e 1908.

Continua após a publicidade

Sua caderneta militar o declara “cocheiro”. Órfão com um ano de idade, foi colocado num asilo por seus irmãos e irmãs. Um avô era da região de Bordeaux, um bisavô de Ardèche. Os proletários conhecem pouco sua genealogia. A família Camus acredita ser de origem alsaciana. Um exilado político pobre vindo da Alsácia ou da Lorena tem mais prestígio do que um miserável da Bretanha ou de Bordeaux. Lucien Auguste casou-se com Catherine

Hélène Sintès, três anos mais velha que ele, em 13 de novembro de 1910. Três meses depois, nasceu Lucien Jean Étienne. Entre os pobres europeus, uma concepção pré-nupcial choca menos do que entre os muçulmanos. Bône, subcircunscrição administrativa do departamento de Constantine, tem quatro especialidades: o tráfico portuário, o comércio de vinho, um cemitério com suntuosas tumbas italianas e blasfêmias. Jura-se “pelos ossos de teus mortos” ou, versão polida, “pela morte de teus ossos”. Não se fala dos mortos diante de alguém que “os tenha frescos na família”.

Naquele outono de 1913, depois de dezoito horas de trem, de Argel até Bône, sentados em bancos de madeira, Catherine Hélène e seu filho Lucien amontoaram-se com baús e móveis numa charrete que os transportou até Saint-Paul. Pouco depois Lucien Camus pai se abre com Classiault: “Em casa as coisas não vão bem, o menino e sua mãe sentem muita falta da sua terra, realmente não tenho sorte, mas mesmo assim vai um pouco melhor nos últimos dois dias.” Com maus ventos e mosquitos, a doença exala dos pântanos pútridos e do lago Fetzara. Às vezes, morre-se de paludismo. Contra essa malária, recomenda-se o sulfato de quinina. Em Mondovi, ficou a lembrança do cólera e da peste que, cinquenta anos antes, matou a metade dos colonos.

As relações de Lucien Camus com seus empregados não são serenas. Ele foi “ameaçado duas vezes pelo chofer indígena”. No entanto, o adegueiro sabe que nunca disse uma “palavra inconveniente”. Preocupado, precisa fazer-se aceitar pelos europeus também. “É verdade que todos esses homens de Bône parecem mansos como cordeiros”, ele escreve, “mas no fundo são falsos e traidores como raposas.”

Continua após a publicidade

Para tratar de um assunto sério, ele vai a Mondovi, onde as crianças se agarram à sua charrete. Ele as faz largar. Emchi! – vá embora. A chicotada de Lucien Camus é leve. Em 8 de novembro ele se apresenta na prefeitura com duas testemunhas e declara o nascimento de seu segundo filho, no dia 7. Um só nome, Albert. Na época, de cada quarenta franceses um se chamava Albert. Camus Albert consta no registro entre dois muçulmanos, Khadidja (gerânio). A primeira testemunha, Piro Jean, diz-se comerciante. Nascido na Sardenha, seria, antes, hortelão. A segunda, Salvatore Frendo, nativo de Mondovi, declara-se empregado. Ele entrega sêmola e massas para o merceeiro Zamathé. Lucien Camus, esclarece o registro, é de “origem francesa”.

Os engenheiros militares executaram as plantas de Mondovi, vinte quarteirões de doze casas. A cidade está para o retângulo como uma cama está para o quadrado. Nos cantos do burgo erguem-se bastiões com nomes de generais: Clauzel, Bugeaud, Négrier… A Terceira República implantou prefeitura, correios, coletoria, prisão civil e polícia. A escola dos meninos – franceses – é separada da escola das meninas – francesas. Os mondovianos instalaram cafés, quadras de jogar bola e criaram duas sociedades de caça, para caçar uma galinhola, um lince ou, às vezes, uma pantera. Bom atirador durante o serviço militar, Lucien Camus sonha em caçar. O recenseamento registra 938 habitantes europeus e 4.869 muçulmanos para o cantão de Mondovi. Esses “indígenas” com frequência não declaram seus filhos. Entre os cidadãos franceses, alguns judeus, entre os quais o funileiro Guez Taieb Daoub. Os pogroms do Constantinois nunca atingiram Mondovi.

Em novembro de 1913, Le Réveil bônois [O despertar de Bône], jornal diário departamental e republicano, oferece como suplemento Salvator, de Alexandre Dumas. O teatro municipal leva A viúva alegre e o Éden Cinéma anuncia O anel quebrado, comédia dramática. Os Camus não utilizam o carro da propriedade para se divertir. Um trabalhador ferreiro ganha 6 francos por dia, um chefe de cultivo ou um bom adegueiro, como Lucien Camus, de 10 a 20 francos. O Renault 112 HP, quatro cilindros, custa 4.900 francos.

A população não “indígena” do departamento elegerá as delegações financeiras, que administram os fundos públicos. De Paris, o ministro do Interior dá suas instruções. Para preencher as cédulas de voto, “lápis são geralmente levados à boca”. O ministro recomenda que sejam substituídos por canetas nas cabines, com pó para secar as cédulas.

Em 11 de novembro de 1913, o editorial do Le Réveil dispara contra “a enorme bandeira alemã novinha […] no mastro do novo vice-consulado. […] Por que essa exibição, quando nossos infelizes irmãos da Alsácia-Lorena são atacados, golpeados e condenados ao mostrarem uma ponta da nossa bandeira francesa?”.

Gente: notícias, fotos e vídeos de famosos, celebridades, entretenimento e mais.

Enquete

O que falta para o centro de Campo Grande ter mais movimento?

Últimas