quinta-feira, 17 de abril de 2025

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A Palavra Inabalável

Quando eu tinha 14 anos, entrei na Escola Lucinda de Poesia Viva
. O lema de
Elisa Lucinda

era “falar poesia sem ser chato”
. Achei aquilo o máximo. Desde os meus 4, meu avô lia pra mim Ferreira Gullar
e Cecília Meirelles
. E me fazia comer frutas durante os livros. As melhores belezas se ouvem desse jeito, sentindo também o gosto que elas têm, dizia. Além disso, punha na agulha os LPs de
Lupicínio Rodrigues

e Orlando Silva
. Meu contato prematuro com certa profundidade de sentimentos e o excesso de pensamento foi inevitável. Uma maneira maravilhosa de formar meus sentidos e me constituir como um ser poético: que vê coisa onde não tem e vê tudo em todas as coisas. Acabei crescendo um pouco sem lugar entre
Barbies

, New Kids On The Block e o Tivoli Park.

Elisa tinha, sempre tem, um ponto: muita gente, equivocada, não suporta a poesia
. O que eu queria naquela época era conviver com pessoas nada equivocadas; ter lugar. É certo que isso acontece muitas vezes pela solenidade a que, por tanto tempo, a poesia foi submetida. A palavra declamação. A impostação dos púlpitos, os versos alexandrinos arcaicos, a complexidade da Ilíada, o hermetismo de um monólito. Como não pudesse ser ela também um assunto ordinário, um bilhete, um samba, conversa de ônibus, linguagem de morro, uma placa de rua, o que registra a caixa do supermercado. E muito mais o silêncio. A poesia é, na carne, o que me faz encarar, à disposição da beleza, a repetição dos dias.

Elisa nos ensinava a falar poemas como se conversássemos. Mesmo os mais rimados, metrados, os sonetos, os haicais. Como se não houvesse qualquer contratempo entre nós e aqueles versos. Como fossemos nós o coração que os escrevera. Nós, os poetas. Que somos mesmo, todos. Isso se não estivermos chatos o suficiente para não nos percebermos assim. Aos 14, na casa de Elisa, comecei a achar legal ter em Adélia [Prado]
, minha
Madonna

e em Jhonatan, meu
Beatle

preferido.

A maioria das alunas eram mulheres e mais velhas do que eu. Que nós, digo, pois lá estava também Maria Resende
, poeta carioca que sente tudo com uma vontade que poucas vezes vi antes e dali pra frente. Adorei Maria e sua integridade escancarada. Éramos as duas “filhas”
de Elisa, de sua escola. O que aconteceu, além de um mergulho no mundo desencantado de
Fernando Pessoa

que acabou com tudo que restava de infância em mim, é que Elisa cismou que eu tinha que falar Adélia. E muito Adélia. E sempre que possível, Adélia.

“A Moça na Sua Cama”
, era o favorito dela na minha voz. Eu me perguntava o motivo mas no fundo não queria essa resposta. Fato é que só a partir de Adélia, Like A Prayer
passou a fazer algum sentido. E o sentido da poesia como Deus(a). A poesia é o nome forte que as coisas têm. Em mim, que aprendi a escrever “elevador”
antes do meu próprio nome. E nunca mais quis ser outra coisa.


Antes do Nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.

Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,

os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,

o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível

muleta que me apoia.

Quem entender a linguagem entende Deus

cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,

foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infrequentíssimos,

se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.

Puro susto e terror.

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Esse texto sou eu celebrando a poesia desde cedo em minha vida; as mulheres que teimam em fazê-lo. Porque é preciso coragem pra olhar as coisas e ver. Tudo que, por estar fora da coisa, a constitui. Agora, pra escrever o que se vê, é preciso mais. Tem que ter audácia, desaforo. O esplêndido caos de onde emerge a sintaxe. Mulheres que comemoramos prêmios que ainda levam nomes de homens. Mesmo tendo sido Enheduana
, poeta e sacerdotisa, filha do Rei Sargão I da Acádia, a primeira pessoa a assinar autoria de um texto, mil e quinhentos anos antes de Homero
.

Viva Elisa Lucinda, Maria Resende e Adélia Prado! Viva toda mulher que empresta sua vida abalável às palavras!


Sedução

A poesia me pega com sua roda dentada,

me força a escutar imóvel o seu discurso esdrúxulo.

Me abraça detrás do muro, levanta

a saia pra eu ver, amorosa e doida.

Acontece a má coisa, eu lhe digo,

também sou filho de Deus, me deixa desesperar.

Ela responde passando

a língua quente em meu pescoço,

fala pau pra me acalmar,

fala pedra, geometria,

se descuida e fica meiga,

aproveito pra me safar.

Eu corro ela corre mais,

eu grito ela grita mais,

sete demônios mais forte.

Me pega a ponta do pé e vem até na cabeça,

fazendo sulcos profundos.

É de ferro a roda dentada dela.

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Fonte

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