Hoje no Museu da República , no Catete, cidade do Rio de Janeiro, estão mais de quinhentos itens ritualísticos de terreiros de candomblé e umbanda que foram roubados pela polícia durante invasões baseadas no racismo religioso praticado há séculos no Brasil. Segundo reportagem de Babi Wentz para o Diário do Rio , “As peças permaneceram apreendidas por quase um século, de 1889 até 1945, no Museu da Polícia do Estado do Rio de Janeiro, onde eram expostas como sendo da ‘Coleção de Magia Negra’”. Esse conjunto de itens estava no acervo da Polícia Civil sob tutela da Sepol e sua transferência para o Museu da República ocorreu graças à intensa mobilização do Movimento Liberte Nosso Sagrado , formada em 2017 para reivindicar a transferência.
Essas ferramentas, roupas, instrumentos e tecnológicas, estão agora mais dignamente preservados, narrados e apresentados. Trata-se de uma vitória inegável e louvável do povo de axé do Rio de Janeiro. Contudo, peço licença para pensar que uma vitória muito importante seria consolidada se o Estado, mesmo que roubou, sequestrou, violou, trabalhasse para que os próprios terreiros tivessem condiçoes para, se quisessem, ter seus memoriais estruturados. No âmago dessa provocação, busco indagar: o que será das tecnologias que estamos produzindo agora? Quem resguardará e transmitirá nossos legados? Onde? O que será feito com as representações materiais das nossas tecnologias?
Diante desse cenário, elaborando essas e outras questões, Oswaldo Eugênio criou a 2050 em meio à pandemia. Funcionando como uma espécie de galeria-escola, o espaço promove intensas atividades envolvendo jovens da comunidade. Alguns já são artistas, outros, nas palavras do fundador, precisavam deixar de ser apenas consumidores de tecnologia para ser também criadores. A partir dessa perspectiva, ele elabora uma proposta que tem a tecnologia digital em diálogo com as tecnologias ancestrais como ferramenta de criação, saúde, trabalho e segurança. O local também sedia encontros e apresenta os frutos das suas práticas educativas.
Atualmente, os trabalhos utilizam a tecnologia de diversas formas. A artista Ana Paula Rocha , em “Amor Incondicional”, retrata uma mulher negra sorridente carregando um bebê com tranças ou dreads numa obra tridimensional feita à mão na qual utilizou tinta a óleo e aproximadamente 2,5 Kg de resíduos sólidos reaproveitáveis. O fotógrafo carioca Clickbycria Click (João Victor Guimarães), se baseia na relevância das pessoas e momentos retratados na sua comunidade para reativar no público a identificação. Já o artista digital Ottis , conhecido por conectar tecnologias digitais à prática do graffiti, na obra Digital Rebirth #02, apresenta uma tela abstrata composta por “tinta a óleo e spray digital sobre tela usando o óculos de Realidade Virtual Fine Art sobre Canson Museum Pro White Matte” – ele realizou tal obra utilizando os óculos num jogo de pintura.
Esse exercício de aprendizado, aprimoramento, acesso e abstração é bastante comum aos jovens que participam de oficinas e encontros da 2050. Gean Guilherme , designer e artista, participa da exposição com a série “Menor Portando”. No processo de construção, Gean escaneou jovens que utilizavam três objetos feito com papelão: um fuzil, um skate e um óculos de realidade virtual. Depois, ele usou uma impressora 3D e transformou essas imagens em obras digitais de rico simbolismo. Segundo Oswaldo Eugênio, tratam-se de símbolos das ferramentas que podem transformar a vida do jovem: a criminalidade, o esporte e a tecnologia.
Caminhando pelo Morro Santo Amaro, se percebe a massiva presença da arte urbana na comunidade. Lucas Ademar , que já foi premiado com o troféu “I Rise We Rise” no Men of The Year 2022, fundou o Instituto Ademafia em 2020 para oferecer aulas de skate para crianças com idade entre 6 e 18 anos do Morro Santo Amaro. No final de semana do dia 22 de junho, Luquinha, como é conhecido na comunidade, junto com parceiros e voluntários, embora sem verba ou patrocínio, entregou uma pista de skate públicas. Por sua vez, o projeto Favela Cores , dedicado à revitalização de áreas periféricas, é um dos responsáveis pela familiaridade dos jovens com a cultura do graffiti. Pelas paredes do local, a 2050 se faz presente como símbolo de arte, saúde, alegria, educação e possibilidades. Na parede de uma das igrejas da comunidade, lê-se: “2050 para sempre te amamos”.
Uma das ações mais recentes realizadas pela instituição foi uma sequência de encontros sobre arte, tecnologia e outros temas relacionados, como meio ambiente. Dentro da programação cheia de bate-papos, encontros e atividades, ocorreu o mutirão para pintura de uma quadra no Morro Santo Amaro. Idealizada pelo artista plástico Antônio Ton , o projeto de pintura ocorre num processo de dissolução de autoria, envolvendo diversas pessoas, buscando a reativação de quadras esportivas e áreas comuns através do uso de cores e formas estudadas pelo artista ao longo da sua longa trajetória e pesquisa com materiais e tecnologias para reuso de áreas, objetos e práticas. Com mais de 30 quadras pintadas em toda a cidade, o trabalho do profissional é uma exata demonstração da relação entre arte, esporte, tecnologia e comunidade, uma vez que as pessoas não apenas agem diretamente na pintura mas também são elas, não o artista, as responsáveis pelo uso e discurso que virá a partir da realização da obra.
Oswaldo Eugênio (Oswaldinho) , Dream Moraes e Vinícius Nobre (Tin Tin) também fundaram a Galeria Lado B , localizada na Praça Tiradentes. Tratam-se de duas instituições que se complementam perfeitamente, uma acolhendo e apresentando manifestações, artistas e diálogos periféricos no “asfalto” e outra, a 2050, atuando na comunidade buscando o fortalecimento das culturas, ideias e inteligências lá mesmo. Ambas reconhecem o lugar da arte como promotora e mantenedora de saúde física, emocional, mental e financeira para as periferias.
Contudo, o “Sistema-Mercado-Circo-da-Arte-Colonial” não demonstra estar apto a investir e valorizar instituições que busquem práticas permanentes. Na reportagem “Axé Nós Fazemos”, pesquisei instituições baianas periféricas e independentes que participam de exposições de artes visuais no Sudeste e na Europa. O que constatei foi “Em geral, somos deslocados, seja para Veneza, seja para o Sudeste, para atender a uma demanda de instituições que não nos enxergam enquanto instituições também demandantes e inteiras e igualmente dignas de apoio para um pleno e autônomo funcionamento.”
Agora, conhecendo a Lado B e a 2050, percebo que, mesmo estando no Sudeste e conseguindo hackear algumas verbas, ainda é difícil para instituições periféricas em geral receberem algo que vá além de uma participação “ilustrativa” e temporária na relação com uma grande instituição que recebe muito mais orçamento. Isso nos leva à lei mais óbvia e aparentemente imutável: o Sistema-Circo-Mercado (leia-se museus e galerias tradicionais, patrocinadores, colecionadores e conselheiros de instituições consolidadas e/ou privadas) não admitem grupos, coletivos e instituições “alternativas” que busquem construir um sistema de Arte que não exista apenas para, em razão e sob o controle da branquitude. A segunda lei que se revela é: a nossa permanência é um ultraje para esse sistema.
Retomo a reportagem “Axé: Nós Fazemos” para reafirmar que, embora o circuito das artes se diga mais aberto a instituições e artistas não-brancos, o que se percebe é que: “ só interessa a (nossa) existência mediante a prestação de serviços. E mais: independentemente da importância ou volume do serviço prestado, estaremos à mercê da selvageria letrada, de forma que a mesma sempre reafirme sobre nós a posição, na qual ela mesma não se enxerga, que (considera ela) devemos ocupar”. Ou seja, só interessa ao Mercado-Circuito-Sistema-Branco que artistas negros, negras, indígenas, periféricos e dissidentes sejam explorados por tal sistema, nunca nutridos.
Em seguida, em razão de uma outra demanda mercadológica, descartados serão/seremos. A ver pela forma como instituições, coletivos e iniciativas periféricas por mim estudadas têm sido tratadas, a atual conjuntura não apenas age para nos descartar mas também trabalha para que não consigamos permanecer de pé após o seu descarte. Ora, se o Mercado não consegue manter tantos artistas por muito tempo, qual a razão para impedir que outras estruturas de permanência, saúde e financias sejam criadas? Essa pergunta nos releva a intrínseca relação entre Arte e Colonialismo. Em alguns casos, para o sistema colonial, não basta que existamos em paz, mas sim que deixemos de existir.
Nesse sentido, patrocinadores que se recusam a fomentar, manter e preservar instituições periféricas se mostram desejantes da não-permanência da periferia no circuito e, consequentemente, da sua morte a médio e longo prazo. Diante desse cenário, só se engrandece a importância de tais iniciativas. No caso específico da 2050, trata-se de gerar e manter tecnologias digitais ou não nas mãos de quem a produz. Evoco no início do texto a situação na qual se encontram as ferramentas, indumentárias e tecnologias de terreiros fluminenses para que possamos ecoar as palavras de Oswaldo Eugênio quando indaga: o que será das tecnologias que estamos produzindo agora? Quem, como resguardará e transmitirá nossos legados? Onde?
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