quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O ano em que o mercado do feijão parou de falar sozinho

Há anos o mercado do feijão vive em silêncio operacional: negócios pingados, pregões esvaziados, compradores seletivos, produtores desconfiados. Mas 2025 fez esse silêncio gritar. Nada sintetiza melhor o atual momento do setor do que o paradoxo que se repete diariamente nas origens e na Bolsa: quando há preço, não há comprador; quando há comprador, não há feijão.

O feijão-carioca entra dia após dia em pregões com 4 mil a 6 mil sacas ofertadas na Zona Cerealista de São Paulo, volume irrisório para início de mês. Mesmo assim, com tão pouca oferta, os negócios não fluem. Os padrões comerciais (7,5 e 8) seguem num labirinto econômico peculiar: valem entre R$ 205 e R$ 225/sc CIF SP, mas não fecham no FOB, porque a origem opera mais firme. O varejo e o atacado pedem preço baixo, a origem não entrega, o intermediário desiste e a cadeia trava. O resultado é um mercado nominal, onde os valores existem, mas a realidade operacional não acompanha.

Nos padrões superiores (8,5, 9 e 9,5), o paradoxo se repete: qualidade existe, preço até se sustenta, mas a procura é mínima. Lotes premium seguem encalhados, enquanto o mercado corre atrás apenas do “mínimo aceitável” para atender um varejo retraído, que compra no limite da reposição.

Do outro lado da mesa, o feijão-preto enfrenta em 2025 um cenário quase distópico: escoamento extremamente lento, preços deprimidos, estoques elevados e um consumidor que simplesmente não responde. A liquidez é tão baixa que muitas cotações já não cobrem sequer o mínimo oficial (R$ 152,91 por saca de 60 kg). Um produto barato demais, neste caso, é sintoma de um setor caro demais para sobreviver.

O choque de realidade: quando a demanda artificial acabou

O ponto central da crise atual está além das madrugadas. O mercado de feijão — e, por associação, o de arroz, dupla que vem deixando de ser a base da gastronomia brasileira — vive hoje um severo choque de realidade, provocado pelo desequilíbrio entre alta capacidade produtiprodutiva e uma demanda orgânica cronicamente baixa, que por anos foi mascarada por eventos excepcionais.

O setor foi “mal acostumado” por dois grandes picos artificiais de consumo

Em 2020, a pandemia gerou pânico e corrida aos supermercados. A estocagem massiva de arroz arrastou o feijão como bem complementar, inflando o escoamento a níveis que jamais refletiram a demanda estrutural do país.

Em 2024, o período trágico das enchentes no Rio Grande do Sul produziu novo duplo choque: mais uma corrida às gôndolas por medo de desabastecimento e um volume gigantesco de doações. Estima-se que entre 100 e 150 mil kg de feijão e 200 a 250 mil kg de arroz tenham sido consumidos fora do circuito comercial, limpando estoques industriais e sustentando artificialmente os preços FOB.

Quando esses estímulos desapareceram, o desequilíbrio ficou exposto. O Brasil produz mais de 3 milhões de toneladas de feijão (todas as classes) por ano, mas o consumo doméstico real é pelo menos 200 mil toneladas inferior a esse volume e segue em declínio. Parte significativa dos estoques que deveriam ser absorvidos gradualmente foi transferida ao consumidor em momentos de pânico. O setor agora convive com volumes excedentes e um ritmo de consumo estruturalmente fraco — combinação que pressiona preços de forma contínua.

O resultado é direto: liquidez mínima, cotações deprimidas — como os R$ 90/sc do feijão-preto comercial em algumas praças gaúchas — e necessidade urgente de desovar estoques antigos, o que amplia ainda mais a pressão vendedora. Para sobreviver, o mercado é forçado a buscar escoamento via exportação (perto de 400 mil toneladas nesta temporada, um recorde) e a impor cortes severos de área, como a redução já confirmada de quase 40% no plantio do Paraná. É um ajuste doloroso, mas inevitável.

Efeitos na produção, na indústria e na geografia do plantio

O sinal de alerta acendeu forte no Sul: produtores migrando do feijão preto para culturas com maior liquidez e segurança. No Paraná, a 1ª safra 2025/26 já vem com cortes expressivos de área (104,2 mil hectares segundo o Deral, redução de 38%). No Rio Grande do Sul, a chegada da nova safra carrega não apenas expectativa, mas medo real: como desovar estoques elevados sem aprofundar ainda mais a queda de preços?

A indústria vive entre dois mundos: excesso de produto com qualidade baixa (problemas de umidade, impurezas e perdas no beneficiamento) e feijão premium caro demais para o consumidor médio. Falta padrão, falta pós-colheita profissional, falta coordenação. O varejo quer desconto, a indústria quer rendimento, o produtor quer preço. Ninguém leva tudo. Resultado: ninguém leva nada.

No meio desse caos, há uma luz — pequena, mas crescente — nas exportações. Lançado oficialmente pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC) em 2024, o feijão-mungo-preto emerge como o principal destaque do ano. Mesmo sendo uma variedade de cultivo recente no Brasil, já atingiu mais de 170 mil toneladas em exportação, garantindo ao país uma posição de relevância entre os fornecedores globais desta leguminosa.

O verdadeiro problema não é clima, mas sistema

Por trás de toda essa instabilidade há uma combinação poderosa: demanda doméstica fraca, crédito caro, estoques desbalanceados, logística limitada, ausência de instrumentos modernos de comercialização e principalmente o famigerado Custo Brasil. Feijão é alimento básico, mas ainda opera como produto artesanal. O setor ainda vive em 1995, enquanto a competição global vive em 2025.

Faltam instrumentos simples e essenciais: contratos padronizados, programa nacional de pós-colheita, seguro rural funcional, estratégias de marca, diversificação consistente e tradição nas exportações. Política pública não pode seguir no formato “tapa-buraco”. Não se resolve um desajuste anual de centenas de milhares de toneladas com compras emergenciais pontuais.

Se nada for feito, o feijão brasileiro vai encolher — não por falta de vocação, mas por abandono econômico. Quando o produtor perde margem, reduz área; quando reduz área, reduz variedade; quando reduz variedade, compromete segurança alimentar, diversidade genética, renda rural e estabilidade regional. Um país que importa e exporta feijão ao mesmo tempo precisa admitir: o problema é de gestão, não de clima.

E para onde vai este mercado?

No curto prazo, a tendência é lateralidade com alguma pressão em virtude dos primeiros cortes da primeira safra 2025/26: pouca oferta do carioca comercial sustentando (de forma frágil) os preços; excesso no feijão-preto ainda pressionando valores; exportação ajudando, mas ainda longe de resolver a equação.

No médio prazo, cortes de área podem reequilibrar preços, mas desde que o varejo reaja.

No longo prazo, o futuro é binário: ou a cadeia inova, profissionaliza logística, crédito e escoamento, ou o feijão seguirá o caminho de culturas que perderam protagonismo e só voltaram a aparecer quando já era tarde.

O setor precisa abandonar o improviso e migrar urgentemente para a gestão estratégica. A pergunta não é: “o que fazer quando o preço cai?”.

A pergunta deve ser: “por que ainda esperamos o preço cair para discutir futuro?”

2025 já escancarou a verdade: o feijão brasileiro não precisa de sorte.

Precisa de sistema.

*Evandro Oliveira é graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e especialista de Safras & Mercado para as culturas de arroz e feijão

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