Mais que um compêndio interminável dos símbolos da história européia até o século 14, escrito concisamente na forma de um grande poema, A Divina Comédia é uma alegoria, em si mesma, da vida humana – ou, pensam alguns, a bíblia escrita por um só homem.
A obra narra a odisséia (além dos moldes do clássico de Homero ) de um homem, que é o próprio Dante, em busca do paraíso onde estará a amada Beatriz – que, para muitos historiadores, foi o amor não concretizado do autor. A Divina Comédia é organizada em três livros – Inferno , Purgatório e Paraíso –, num total de 33 cantos. Cada canto é formado por versos em tercetos de rimas, cheias de palavras que transcendem a referência direta.
“Num tempo em que a língua culta ainda era o latim, Dante tomou o dialeto popular toscano e o transformou numa língua literária que, sem modificações fundamentais, tornar-se-ia o italiano clássico” , diz o historiador da literatura John Macy , para quem o início do livro – escrito entre 1307 e 1321, ano da morte de Dante – é a parte mais interessante e significativa de toda a obra. “Os pecadores são sempre mais dramáticos que os santos.”
O Inferno começa com Dante caminhando errante por uma selva escura, metáfora do pecado e do mal dos quais ele não consegue se livrar, ameaçado por uma pantera, um leão e uma loba – a maldade, a violência e a incontinência. Aparece-lhe então a imagem do poeta latino Virgílio, personificação da razão humana, que o reanima, promete tirá- lo da selva e levá-lo ao Paraíso “de alma pura” . Antes, porém, toma a sua mão para levá-lo a um passeio pela existência humana – incluindo o Inferno e o Purgatório. A imagem de um abismo em forma de funil, com nove círculos que se vão estreitando até chegar ao centro da Terra, morada de Lúcifer, soa criativa até para o arcabouço cristão da Idade Média. E é no cristianismo que Dante vai beber para compor sua obra.
O primeiro dos círculos é o limbo, até hoje entendido pela Igreja Católica como o lugar para onde iriam as crianças que morrem sem culpa antes do batismo. No último deles aguarda Lúcifer, cercado dos piores pecadores e com água gelada até o peito. É sobre o corpo do monstro que Dante e Virgílio devem passar para ir ao Purgatório. No segundo canto o personagem invoca as musas, entes da mitologia grega, para que o esclareçam sobre a empreitada. Eduardo Iàñez , autor de História da Literatura Universal, diz que, exatamente pela simbologia complexa, a Comédia foi, por séculos, reduzida a uma alegoria moralista, só sendo reconhecida como uma das obras mais perfeitas da literatura em todos os tempos a partir do século 19.
Os sete pecados capitais são expiados no purgatório. Ao entrar, Dante é marcado com sete pés, apagados um a um por um anjo conforme canta os hinos sagrados. E, ao chegar ao cume da montanha, encontra a amada Beatriz, banha-se nas águas sagradas do rio Leteo e ascende ao primeiro dos dez círculos do Paraíso. O último dos céus, o metafísico Empíreo, lhe oferece uma contemplação da Santíssima Trindade e outros entes do cristianismo, culminando na inexplicável visão de Deus.
Dante na verdade aproveitou-se do melhor material científico da época – a exemplo de Ptolomeu e Aristóteles – numa releitura religiosa medieval imersa em seu talento criativo. Iàñez chega a ver na proposta de Dante a tentativa de fazer uma “síntese perfeita da Idade Média”, uma tarefa equivalente ao que fizera a Bíblia com o cristianismo.
Quem foi Dante Alighieri?
O político, escritor e intelectual Dante Alighieri nasceu em Florença, em maio de 1265. Cidade e período que forjaram um centro de produção literária e artística intenso, mas que pouca participação teve em sua obra-prima. O autor volta e meia precisou de seus mecenas em Verona ou Ravena. Sua atuação na vida pública foi brilhante. Segundo teria dito outro grande autor do renascimento, Boccaccio, em Florença não se tomava nenhuma deliberação sem sua opinião. Várias vezes foi embaixador da República de Florença, pertenceu ao Conselho do Estado e, finalmente, em 1300, obteve o cargo de “priore”, que era a suprema magistratura política de Florença. Diz a lenda que parte do Paraíso só foi publicada após sua morte, em 1321, encontrada pelo filho graças à ajuda do fantasma do pai. Qualquer semelhança com Hamlet não é mero acaso – o fantasma estaria exigindo a recompensa pelo esforço monumental: ver pronta uma das maiores obras da literatura de todos os tempos.
As melhores notícias sobre arte e cultura e o roteiro cultural da semana reunidos em um só lugar. Assine Bravo! indica e receba a newsletter às sextas-feiras Inscreva-se aqui para receber a nossa newsletter
Cadastro efetuado com sucesso!
Você receberá nossas newsletters às sextas-feiras.