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Um tributo a Quincy Jones num Harlem encantado

Quem chega ao prédio número 555 da avenida Edgecombe, em Nova York, jamais desconfiaria que, no terceiro andar, uma mágica esteja ocorrendo. Não existem placas, cartazes ou mesmo uma pessoa para direcionar quem apareça. Mas o minúsculo apartamento 3F serve como um coração para o jazz que continue pulsando no Harlem, bairro histórico e berço de uma parte da música do século XX.

Religiosamente, há 36 anos, Marjorie Eliot retira aos domingos os móveis de sua casa para abrir espaço para uma tarde de jazz. A entrada é gratuita, não existem reservas a serem feitas. Pouco a pouco, as pessoas encontram lugares na sala, na cozinha ou nos corredores estreitos do local. Há sempre espaço para mais um.

Jamil Chade/fotografia

Sem qualquer cerimônia, é a própria Marjorie, uma pianista de jazz, que percorre a casa com uma bandeja de doces enquanto espera os demais músicos. Quando um dos meus filhos agradece e não pega o que foi oferecido, a voz suave da anfitriã é “Querido, pode pegar. São deliciosos”. Como negar?

Naquele apartamento apertado, ela prolonga a cada domingo o legado musical de um bairro que nutriu lendas como Duke Ellington e Billie Holiday .

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A intimidade com que ela trata alguns dos membros do público deixa claro que vários deles são frequentadores assíduos. Os músicos chamados para fazer parte do encontro também são convidados a vestir o mesmo sorriso da dona da casa.

Mas não há nada de ordinário naquela residência. Tudo começou em 1992 quando Philip, filho de Marjorie, morreu num domingo. Um ano depois, ela resolveu homenageá-lo com um concerto. No ano seguinte, a cerimônia cresceu, atraiu afetos e virou semanal.

Desde então, outros dois filhos da pianista também morreram. Mas Marjorie se recusou a abrir mão da música. De fato, a sessão de jazz passou a ser sua terapia, seu luto e sua garantia de vida. Uma espécie de tratamento para permitir que os domingos de dor pudessem ser atravessados.

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marjorie-eliot-tributo-quincy-jones-jamil-chade
Jamil Chade/fotografia

Quando a reportagem da Bravo! esteve no local, Marjorie escolheu transformar a tarde de domingo em um tributo a Quincy Jones , que acabara de morrer. Com a mesma naturalidade que percorria o piano, ela falava de um dos grandes produtores da música americana como se fosse apenas mais um naquela sala. “Quincy era muito generoso. Cada vez que eu precisava de algo, ligava para ele e ele apenas me dizia: como eu posso te ajudar?”

Praticamente todos os grandes músicos têm uma história para contar sobre Quincy. Marjorie tinha uma tarde toda de repertório.

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Durante as duas horas e meia, a anfitriã levou seus convidados a um périplo pela história da música que Quincy promoveu, deixando inclusive um espaço especial para a Bossa Nova . A pianista, porém, não aceitava o óbvio. Suas variações de “Garota de Ipanema” ou “Meditação” eram delicadas, ousadas, líricas e inesperadas. Da cozinha, um casal se abraçava enquanto a música tomava o local como um cheiro do café que iria sair.

Meu filho caçula sorriu e me sussurrou: “papai, eles sabem tocar música brasileira”.

Conforme a tarde caía, o público comentava que foi no mesmo prédio que viveram gigantes como Andy Kirk , Gil Scott Heron e o saxofonista de Duke Ellington , Johnny Hodges . Pelas paredes, estavam estampadas fotos de quem passou por ali ao longo de trinta anos, frágeis reportagens de jornais estrangeiros sobre aquele local e uma coleção de programas de recitais e concertos que parecem não envelhecer.

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Nenhum vizinho jamais se queixou da música, garantiu a dona da casa. Alguns, inclusive, contribuem com sucos, doces e cadeiras.

Quincy Jones certamente receberá dezenas de tributos grandiosos em alguns dos maiores teatros do mundo. Mas, num modesto apartamento na capital mundial do jazz, o artífice de uma revolução musical foi homenageado com magia.

Suas músicas e de todos a quem ele deu a mão, estavam vivas. Bastava ouvir os suspiros de um público enfeitiçado numa suave tarde de domingo no Harlem.

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