Um ditado clássico é “o silêncio diz muito” . Quando ouvimos essa frase costumamos aceitá-la, no máximo acenando com a cabeça em concordância. Mas, parando para pensar, o que ela significa? O que o silêncio de fato nos diz? Será que realmente paramos para ouvi-lo ou simplesmente o ignoramos, afundando-o em nosso inconsciente, até que ele fique ensurdecedor?
É sobre isso que penso ao ler os quatro livros de Jacques Fux , que o autor intitulou de a Tetralogia do Silêncio: “Herança” , “ As coisas de que não me lembro, sou” , “ Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer” e “ Me u pai e o fim dos judeus da Bessarábia” . Ao longo das mais de 470 páginas que compõem essa coleção, Jacques trata de temas sensíveis que envolvem um trauma geracional vivido pelas famílias judias, e que é perpetuado entre gerações de maneira silenciosa.
Não vou me ater aqui às questões das raízes culturais trazidas pelo autor, mas tentarei refletir sobre as palavras escritas, oposto ao silêncio, que dão voz aos sofrimentos vividos para a reelaboração desses traumas. Em Meu pai e o fim dos judeus da Bessarábia, ele afirma: “Os silêncios herdados e perpetuados são frutos de um trauma inconsciente, de uma impossibilidade narrativa da dor.”
Jacques traz em suas obras o silêncio marcado pela vontade de esquecer, de enterrar memórias dolorosas demais para serem compartilhadas. Há uma fantasia coletiva de que dar voz a seus traumas os fará crescer e fugir do nosso próprio controle. Na verdade, reprimi-los não nos dá uma garantia desse mesmo controle. A repressão deixa mais perguntas do que respostas, abre espaço para especulações e essas igualmente nos moldam como humanos. “Afinal, disso é feito a vida, dos detalhes, das minúcias, das quinquilharias. Munido das miudezas é que se prova que uma vida foi vivida” , continua ele, mais adiante.
O interessante título da obra As coisas de que não me lembro, sou , ilustra como somos constituidos não somente pelas memórias que podemos narrar, mas também pelas vivências e percepções que nos circundam e nos fazem ser quem somos nesse exato momento. A sua cultura, a sua criação. O que te aconteceu e foi elaborado, E também o que te aconteceu e foi reprimido. É tudo parte de uma história construída a partir de experiências vividas.
Tudo o que somos passa pela nossa memória, mas ela nem sempre se atém aos fatos do modo como aconteceram. Isso porque a memória é a leitura subjetiva da realidade, que pode ou não ser ilusória. “Também não me lembro da vida que eu vivi. Da memória que eu inventei” , escreve Fux em As coisas de que não me lembro, sou.
O trauma é o roubo da própria história vivido por grupos que historicamente aprenderam que, para sobreviver, deveriam se silenciar. Essa é a memória que eles constroem da própria história, com as marcas de uma sociedade opressora que tomou as rédeas dessa narrativa. Falar implica em se apropriar, significa existir no mundo conforme as suas próprias experiências e a sua própria voz.
“A verdade tem estrutura de ficção, M., já que nenhuma linguagem – nem do corpo, muito menos da arte e da poesia – pode dizer: ‘o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e não dispõe de outro meio para fazê-lo.”
Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer (p. 52)
O ato de trazer à tona uma memória é corporal. É o corpo que retém as sensações e as vivências, até mesmo dos traumas. É através do corpo que vivemos e é desse mesmo corpo que ressignificamos o vivido. O ato de escrever é expressivo e, ao colocar em palavras aquilo que é retido no corpo, organiza os sentimentos e possibilita a reinterpretação dos fatos.
Essa é uma tarefa árdua, que demanda o entrar em contato com seus medos e fantasmas antes de transformá-los em superação. O deixar ser narrado por outro é permitir que a opressão se prolongue. Tomar a narrativa para si é retomar o poder que se tem sobre a própria história e, a partir disso, fortalecer uma identidade.
Apesar do processo penoso, é apenas no reviver, no encarar, que o trauma que pode se esvair. Escondê-lo, silencia-lo, reprimi-lo, é impedir que ele seja sequer processado. Esse é o papel da narrativa, seja escrita, seja falada, que é o cerne da psicoterapia clássica como a conhecemos. É a elaboração das vivências e a atribuição de significado a algo que pode ter perdido o sentido. É o que Jacques faz em suas obras por si e por todos aqueles que não conseguiram retomar a própria voz.
“Narrar. Narrar para transformar a dor em palavra. Escrever para rememorar um mundo amado e perdido. Nomear a experiência. Nomear para curar a angústia e o desamparo. Nomear para restaurar e reconstruir o perdido em trevas. O silêncio e sequelas.”
“Herança” (p. 209)
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