O mercado fechado y elitista das artes está há muito tempo acostumado com extrativismo. É um mercado que circula uma imensa quantidade de dinheiro, a partir de valores atribuídos via especulação y não possui nenhuma regulamentação federal específica para isso. A Lei de Direito de sequência — uma espécie de royalty sobre a revenda de uma obra valorizada — não é aplicada, tirando a proteção da longevidade tanto do patrimônio quanto da rentabilidade dos artistas.
Os contratos de representação são em maioria de gaveta, deixando as relações vulneráveis. Muitas das parcerias com agentes do mercado duram apenas o tempo necessário para que seu capital cultural seja extraído. Ninguém se preocupa em cumprir os acordos estabelecidos. Ainda tem todo o fluxo de irregularidades fiscais que ficam por debaixo do tapete: lavagem de dinheiro y participações em esquemas de corrupção movidas por ideias infames de poder.
A verdade é que o mercado de arte não é muito diferente de um lobby político, então é extremamente possível assistir diversas pessoas se movendo de acordo com a maré. Por mais correto que você seja, sempre encontrarão um jeito de narrar quem é contra-cultura como vilão. Se os boatos não têm força se cria uma cadeia de isolamento dos instrumentos de validação que podem te trazer prestígio ou a exclusão imediata das seleções institucionais por meio da não comercialização de trabalhos, de más recomendações, de censura, de repressões passivo-agressivas. Poucos se salvam.
Enfrentamento do racismo institucional
Quando uma artista como eu surge, batendo tão de frente y trazendo questões que mal são abordadas, isso causa um estranhamento em muitos, admiração em outros y também um processo de minimização sistêmica. Quando você se propõe a fazer diferente com as ferramentas do próprio mercado, a primeira resposta é sempre o menosprezo, é sempre a rejeição. Esse pensamento elitista que ainda estrutura a arte brasileira é muito engessado y distante de repertórios históricos aos quais os artistas se propunham a articular cultura desafiando as normas do mercado.
Já passei por situações bem diversas, desde assédios, boicotes y ameaças explícitas de quem se diz ‘mandar no mercado’ até me sentir constantemente sendo descredibilizada durante uma negociação. Algo que se enraiza bastante no racismo institucional y corporativo. Sobretudo quando falamos de mulheres pretas retintas, queers y PCDs como eu, em posição de liderança. É muito complicado ter a psique preparada para enfrentar esses tipos de situações, pois em ambos os casos existem vários protocolos sócio-raciais de como não reagir imediatamente para navegar enquanto se digere um processo de reprodução de violências y silenciamento.
Adoecimento e autocuidado
Eu fiquei um ano recolhida, em um tratamento oncológico muito intenso y, também, diversas coisas aconteceram na minha vida nesse período como, por exemplo, o falecimento da minha mãe y eu ver a HOA adoecendo, laços se quebrando, dinheiro investido não retornando, dívidas y prejuízos acumulando, pessoas abandonando acordos, situações inflamando y a esperança se perdendo… Usei esse espaço de autocuidado que eu tive que impor sobre mim mesma para conseguir de fato olhar para tudo isso. Eu tinha um ritmo muito absurdo de produzir y arrombar todas as portas que estavam fechadas. Não conseguia visualizar o tamanho de tudo isso que estou construindo. Mas, hoje, com um maior distanciamento y também organizando as informações, eu acho que dei uma revoada (risos). No Brasil, existe um mercado pré y pós HOA y, sinceramente, o único sentimento que eu tenho hoje quando eu percebo isso é de tranquilidade.
Um renascimento, uma nova HOA sem fins lucrativos
Essa transição é apenas uma adequação de termos para uma coisa que a HOA sempre foi. Se formos falar abertamente sobre a operação da HOA como galeria, o parâmetro sempre foi institucional. A dinâmica sempre foi muito mais alinhada com vertentes de empreendedorismo social, do que com o formato tradicional de comércio varejista. Lembro que alguns amigos que empreendem ficavam loucos com os meus números de faturamento pois eles diziam que a HOA basicamente ganhava 10, para devolver 8. Ou seja, sempre operamos distribuindo muito mais dinheiro do que acumulando. Do outro lado, nosso método de trabalho sempre foi muito focado no desenvolvimento de acompanhamento curatorial, oferecendo recursos para que os artistas pudessem desenvolver e aprimorar o corpo de trabalho deles. A HOA sem fins lucrativos vai apenas continuar fazendo o que ela sempre fez, mas sem a parte da comercialização de obras de arte.
Menos pressão da comercialização e mais liberdade
Tudo começou com 10mil reais que peguei emprestado da minha ex-chefe durante a pandemia para iniciar a HOA. Foi surreal. Manter a HOA como uma galeria de arte independente durante esses quatro anos foi muito insano. Neste período, dedicamos mais de 5 milhões de reais para os artistas em forma não só de repasses, mas, principalmente, de recursos para desenvolvimento, distribuição y divulgação de trabalhos/carreiras. Isso significa quase 70% da nossa receita total.
Se eu fosse uma CEO de start-up estaria nas nuvens por ter gerado todo esse dinheiro com arte em tão pouco tempo, mas como eu sou uma artista-articuladora cultural que quer prioritariamente realizar micro-política em prol da justiça social, essa operação se tornou sufocante. Sufocante pq eu não podia descansar, essa é a lei do negócio. O impacto do capitalismo nas relações — sobretudo as de assimilação identitárias — é muito cruel. Então só o fato de eu não ter que depender do dia-a-dia comercial para conseguir manter a HOA em pé já é um alívio. A HOA não é uma galeria de arte, nem um museu ou instituto. A HOA é um orgão facilitador que tem um histórico de fomento à jovens artistas como um método. Inclusive o acrônimo da HOA mudou, tá? Deixa de ser HOUSE OF AYEDUN, para se tornar HORIZON OF ARTS. Já deu de eu ser a mother da casa. To com uma pilha de pratos cheios de cuspe para lavar (risos).
A lógica do dinheiro, justiça social e micro-política em expansão
Outro ponto que desejo nesta nova etapa é ganhar escala e sair do mundinho alternativo “hipster bola da vez do sudeste” para chegar em outros territórios de um Brasil profundo por meio de iniciativas verdadeiramente coletivas y de impacto socioeducacional por meio das artes y da cultura. A HOA, a partir de hoje, olha para o sul-global como um todo.
Dentro desse desenho existem estratégias super importantes que são a criação de um patronato robusto formado por pessoas que conseguem enxergar a HOA como uma iniciativa de valor social y querem chegar no amanhã com a tranquilidade de estarem do lado certo da História apostando na nossa capacidade de desenvolver y apoiar programas transformadores. Também teremos a implementação do Conselho Cultural da HOA formado por uma rede global de pensadores, artistas, professores, curadores y amantes da arte de diversos países para acompanharem essa nova fase de perto y também atuarem como mensageiros das nossas boas intenções.
A HOA antes era muito centrada na minha figura y, agora, com esse conselho, conseguimos desmembrar isso e ganhar novas extensões. A intenção é que fiquemos mais plurais. Queremos entender as fissuras comuns entre territórios, como a justiça climática, por exemplo, que inevitavelmente passa pela justiça social y racial. Esse conselho é fundamental para que a HOA consiga construir mais pontes, para que a gente crie um fluxo próprio de distribuição. Eu acho que dentro desse processo de reformatação é muito importante a gente localizar em que mundo vivemos atualmente, y nos questionar do porquê fazemos o que fazemos. Um trabalho de arte na parede sobre o meio-ambiente não lida com o problema ambiental. É preciso agir. Um trabalho de arte na parede sobre o racismo não lida com a discriminação racial. É preciso agir. Um trabalho de arte na parede sobre a desigualdade não lida com a questão de classes. É preciso agir. Vejo esse conselho como uma bússola de oportunidades de intercâmbio.
A falácia da meritocracia e o alargamento de acessos como premissa
Pouquíssimas pessoas sabem, mas eu sou cria de iniciativas sociais. Tudo que já acessei até hoje é porque tive uma base educacional muito completa na infância. Estudei em escolas solidárias da comunidade judaica, mais tarde tive bolsas de estudo em excelentes colégios privados. A partir disso, a minha vida foi aos poucos se transformando. Não falo de um lugar de ascensão social como parâmetro de riqueza, não, tá? Não acredito em meritocracia, não assimilo isso com ideia de sucesso. Toda vez que alguém mencionava que eu estava construindo meu império HOA eu pensava ‘gente, que maluquice’ (risos), porque sempre foi sobre desenvolver acessos que diferem do que é sistematicamente disponível para a população em um país como o Brasil. Y pq esses acessos são importantes? São importantes pq a partir deles eu aprendi cinco idiomas, passei a conviver com pessoas que tinham realidades diferentes da minha, consegui ter acesso a um mercado de trabalho a partir de um lugar de dignidade, conheci outras culturas, morei em outros países, aprendi o que é ser preta y ter a experiência de viver sem estar a serviço de alguém, entrar y sair de onde eu quiser sem desconforto. Existem milhares de coisas que a educação me proporcionou, antes mesmo de eu me entender como artista. Y durante esses quatro anos na HOA, lidando com artistas y jovens marginalizados, consegui detectar o quanto não ter acesso à iniciativas como as que quebraram o ciclo de pobreza da minha vida, estigmatiza o comportamento social de muitas pessoas.
Aqui no Brasil, infelizmente eu vejo um arquipélago de comunidades adoecidas. Então, eu acho que a atuação da HOA a partir de agora tem como premissa direta de contribuir para que esses jovens possam compreender a existência da livre-circulação a partir do que elas carregam na própria mente. Parece utópico, eu sei. Mas só parece porque infelizmente tem pouca gente no mundo dedicada a ganhar para o outro ganhar também.
Horizon of Arts e a nova geração de artistas
Decidi não projetar expectativas de como as pessoas recebem a HOA em suas vidas pq existem muitas coisas que a gente não consegue y nem tem que controlar. Y a sensação de ver um sonho sólido esvaindo pelas mãos é absolutamente muito dolorida. Mas eu sei como eu quero que a HOA seja y eu acho que antes de tudo, é importante que ela siga sempre existindo, que ela crie legados, esteja presente entre gerações, que ela inspire mas também faça, mesmo que minimamente, a diferença na vida de pessoas que eu ainda nem conheci y que talvez, nem conhecerei.
E como eu tenho sentido essa nova fase de que a HOA agora está existindo para além de mim? Muito bem! Eu literalmente repito isso pra mim mesma toda vez que me metem numa briga, ou que sou desafiada, ou que tentam me usurpar, ou sou protagonista de fofocas alheias, ou me sinto sozinha-abandonada confrontando esse mercado y até mesmo quando tem gente jurando de pé junto que a HOA não é legítima, apontando razões completamente mal discernidas sobre o que sou ou faço. Repito, repito, repito y eu acho que ultimamente repeti tanto que já tá virando feitiço y em muito breve, finalmente, será verdade plena. Eu estou finalmente feliz.
Por fim, se eu pudesse dar um conselho para quem está começando agora neste mercado da arte seria: Saibam conversar. Tudo passa. Para um mundo de muitas guerras, a conversa é a melhor das soluções. Outra coisa: exercitem a memória. Estamos todos em um mundo de cognições muito líquidas, lembramos só do último instante y nada mais. Além do que estamos cada vez mais nos tornando viciados em sociabilidade ultra estimulante, o que nos afasta de espaços de calma y cuidado. Y precisamos voltar a entender que comprar y vender não é a mesma coisa que dar y receber. Resumir todas as relações em transações pode destruir a humanidade que tem dentro da gente. Arte manifesta, cultura emancipa.
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