Elizabeth Sparkle (Demi Moore) vive o auge da fama, envelhece, enfrenta rejeições, estranha a si mesma, rejeita-se e se submete a uma “intervenção estético-existencial” que se assemelha a uma reprodução assexuada. É então que Sue (Margaret Qualley) nasce — ou melhor, irrompe.
O prescritor dA substância pede que Elizabeth e Sue aceitem (e nós também) que são a mesma pessoa, mas elas não se reconhecem, nem acumulam como legado as experiências, as dores e prazeres uma da outra. Competem pela seiva da vida. Elizabeth aliena-se, subtrai-se, degrada-se, acaba-se. Elizabeth é uma mulher – e não digo isso como quem enuncia um fato fisiológico. O soberano é homem – embora múltiplo em personagens, é ele o sujeito absoluto e essencial. Eis o resumo dos fatos.
A obviedade do argumento é irritante. O filme, no entanto, emprega muitos outros recursos a serviço da representação das relações de gênero e seus produtos materiais e simbólicos.
Todos os elementos dizem que o tempo de Elizabeth Sparkle passou. Há os elementos óbvios: a sequência iniciada com a instalação de uma estrela na calçada da fama logo alcança o tempo em que os passantes pisam desatentos o seu marco de validação. O tempo é um iconoclasta. Há outros elementos mais sutis. A ginástica aeróbica, as grandes estampas, as cores quentes e saturadas que adornam as paredes do corredor onde se enfileiram as imagens da sua vida em exibição.
As cores também têm sua função expressiva. Quisesse representar velhice, veríamos sépia, cinza? Aquelas, acho, são as cores do anacronismo, as cores da juventude de décadas passadas. As cores anacrônicas no espaço de performance de Elizabeth vibram; as cores do seu espaço íntimo, onde está sempre só, são melancólicas – anacrôn(m)icas também. No centro desse mundo íntimo, está uma imagem agigantada de uma versão de si, uma versão passada.
Não quero me demorar muito na análise dos planos (excelentes críticos, com mais recursos, já o fizeram ou farão), mas é bonito ver o compromisso narrativo e estético do enquadramento. O plano abre para que falem alto esses elementos cênicos. O plano se fecha, chega ao detalhe, para que, olhando um homem, vejamos um tirano medíocre e repugnante. O duro encontro com o tempo inscrito nas linhas do rosto refletido no espelho é comunicado em primeiro plano, ângulo normal. O posicionamento e o movimento da câmera nos convocam à sobriedade e nos alertam sobre o delírio. Ela é eloquente, é fácil aderir ao seu argumento sinestésico.
Presumo que Coralie tenha escrito o roteiro de A Substância com a ajuda dos textos de Simone de Beauvoi r sobre envelhecimento. As afinidades são muito marcantes. Nesses textos, lemos que a mulher que envelhece pena para reconhecer o seu reflexo no espelho, “experimenta uma despersonalização” , percebe-se “ bruscamente despojada de sua feminilidade”, “perde, jovem ainda, o encanto erótico e a fecundidade de que tirava, aos olhos da sociedade e a seus próprios olhos, a justificação de sua existência e suas possibilidades de felicidade”, “assiste impotente à degradação desse objeto de carne com o qual se confunde”, “luta, mas pintura, operações estéticas não podem senão prolongar sua juventude agonizante” . A transição cortaria “em dois, brutalmente, a vida feminina” .
Embora descreva variações, ali não temos uma experiência particular ou exclusiva de uma indústria. A crise seria vivida de forma “menos aguda pelas mulheres que não apostaram particularmente na sua feminilidade” ; ainda assim, não se trata de vaidade ou fixação individual. Em Beauvoir, trata-se de um processo biopsicossocial aterrorizante vivido por sujeitos que habitam um mundo sobre o qual não têm domínio, “senão por intermédio do homem” , as mulheres. Entre nós, “deixar de ser desejada, é perder”. Nessa encruzilhada, podemos “ trapacear com o espelho” , tentar “deter o tempo num esforço patético” , planejar “recomeçar”, mas “quando se esboça o processo fatal, irreversível”, sentimo-nos “tocadas pela própria fatalidade da morte” .
Na experiência vivida, o envelhecimento é um processo marcado pelo horror e o sentimento de medo. Coralie adere à ideia, orquestra a sua encarnação e leva as formas denotativas e conotativas de Beauvoir às últimas consequências com as ferramentas que o cinema extremo empresta. Por exemplo, é impossível não ler na luta entre Sue e Elizabeth, em sua violenta competição e coreografia absurda, uma encenação muito particular daquela frase “quando renuncia a lutar contra a fatalidade do tempo, outra luta se inicia: é preciso que conserve um lugar na terra” . Sue é um duplo perigoso. É uma “ingrata que lhe deve a vida” , mas não pediu para irromper. Está próximo de uma filha, por quem nutre simultaneamente paixão e hostilidade. Recomeça através dela, e recusa “ ferozmente deixar-se destronar” . Destroem-se.
“quando renuncia a lutar contra a fatalidade do tempo, outra luta se inicia é preciso que conserve um lugar na terra” (Beauvoir, 1967, p. 351)
Elizabeth é uma estrela reificada em concreto, e, incapaz de transformação, gasta-se. Seu esforço patético contra o envelhecimento é um sacrifício que lhe destroi as condições de continuar.
Coralie Fargeat, gosto de pensar sobre seu filme, mas não gostei de assisti-lo. Desviei o olhar muitas vezes. Experimentei angústia, impaciência e me espantei desgostosa com o alívio cômico que os últimos vinte minutos produziram em mim e em meus colegas de audiência.
Esses minutos foram uma regressão afetiva coletiva, uma vivência de descontrolada agressividade, uma redenção ao avesso. Você, sendo incontinente, representou a incontinência, e produziu o alívio do medo de perder o controle. Não gostei, mas a dissolução de todo senso positivo de contenção combina com um filme sobre impotência.
Esses desagradáveis minutos, subsumiram seu cinema às premissas da sua peça acusatória. Deliciosa metalinguagem, mas uma insatisfatória leitura dos escritos – penso. Se entendi bem, com o envelhecimento, com a derrota na luta contra a fatalidade do tempo, entra em cena o conflito entre as reivindicações próprias do sujeito – as mulheres – e as limitações que acompanham esse nosso estatuto rebaixado, essa alteridade negativa. Envelhecer, parece, é também oportunidade para descobrir-se desigual e, então, agenciar a própria autonomia. Coralie faz o conflito dançar diante de nós, mas o filme não consegue compartilhar o sentido ético da inspiração presumida, talvez não queira, nem precise.
Reconheço o seguinte: há quem tente se proteger do desastre e há quem lhe estenda a mão, queira intimidade com o terror e familiaridade com o medo. Eu estou entre as primeiras, e talvez isso tenha me privado de qualquer epifania ao assistir A substância. Restou um gosto de degradação na boca. A projeção da agressividade sobre aqueles corpos gerou asco, mas não sei se da violência, d”A” “mulher”, de mim.
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