Pela primeira vez, Caio Blat
e Herson Capri
se encontram nos palcos na peça
Memórias do Vinho (Per Bacco)
, em cartaz no Teatro
Vivo, em São Paulo, com direção de Elias Andreato
. O texto foi o último escrito pela atriz, diretora e dramaturga Jandira Martini
(em coautoria com Maurício Guilherme) antes de sua morte em janeiro deste ano, apresenta dois personagens em cena: um pai (Herson Capri) e seu filho (Caio Blat).
Na trama, eles se reencontram na antiga casa da família após anos de afastamento. O pai, um servidor público aposentado, dedicou sua vida a criar um valioso legado: uma gigantesca adega com os melhores vinhos. O filho, um publicitário de 40 anos que viveu na Austrália, deixou para trás o sonho de ser cineasta e retorna ao Brasil em meio a uma crise financeira familiar. Ele propõe ao pai a venda de alguns dos preciosos vinhos, desencadeando um embate dramático que se desenrola na adega.
Além da peça, Caio e Herson tiveram outra experiência juntos, mas atrás das câmeras, com a novela “Beleza Fatal”, do streaming Max (antigo HBO+),
prevista para estrear em janeiro de 2025. A trama tem o meio fashion como pano de fundo e o elenco inclui figuras como Alice Wegmann, Camila Pitanga, Camila Queiroz, Daniel de Oliveira, Giovanna Antonelli, Henri Castelli, Izabela Prado, João Vicente de Castro, Murilo Benício, Murilo Rosa, Reynaldo Gianecchini e Rodrigo Simas.
Bravo!
propôs uma dinâmica diferente, sugerindo que os dois atores entrevistassem um ao outro, discutindo temas que vão além do universo da peça. Confira os melhores momentos desta conversa a parti de agora:
Caio Blat:
Já está a caminho do teatro, Herson?
Herson Capri:
Não, ainda estou no hotel. Você já está no teatro?
Caio:
Estou no carro, saindo do centro. Tenho quase uma hora de viagem.
Herson:
Caramba. Eu ainda tenho 9 minutos aqui, então estou tranquilo.
Caio:
A semana foi boa, descansou?
Herson:
Descansei bastante, fiquei com os filhos, foi ótimo. E você? Está animado?
Caio:
Cara, estou animado, mas ansioso porque é a primeira semana que a gente para. Estou querendo chegar para a gente dar aquela aquecida, passar a peça toda no camarim, aquele exercício de ritmo, fazer a peça toda acelerada para relembrar.
Herson:
Vamos fazer, com certeza.
Caio:
Mas a semana foi corrida, tive que entregar minha casa, mudança, cuidar do Bento, e semana que vem já começo a ensaiar outra peça. Não vou ter mais nenhum dia de folga, vou fazer a nossa peça no fim de semana e ensaiar todos os outros dias. Estou numa correria grande.
Herson:
Você está numa pauleira, cara. Pauleira bacana. Por teatro, né? Teatro com teatro.
Caio:
É, teatro dobrado. E tirando da gaveta um projeto de 20 anos que sempre quis fazer. Vou começar semana que vem.
Herson:
Já pode contar alguma coisa?
Caio:
Posso, posso. É um projeto antigo, “Os Irmãos Karamazov”, do Dostoiévski.
Herson:
Uau.
Caio:
Fiz essa adaptação com o Manoel Candeias há uns 20 anos, quase montei, mas não deu certo. Agora, consegui finalmente a turma certa, o patrocínio, e o SESC está interessado. Faz tempo que não dirijo teatro também, então vai ser uma aventura.
Herson:
Grande, cara. Que coisa boa, Caio.
Caio:
Estou com um friozinho na espinha.
Herson:
Você só pega barra pesada, no melhor sentido. Coisa boa, clássico. Você acabou de fazer uma sequência que me deu a ideia de que você é o ator brasileiro que mais conhece Guimarães Rosa. Fez [ Grande Sertão no
] teatro, cinema, está sempre envolvido. Suas escolhas são super profundas, interessantes.
Caio:
Adoro nosso trabalho como um veículo para as pessoas conhecerem grandes autores, sabe? Sempre tenho essa motivação. Quando faço uma peça, sempre quero pegar um texto forte e aproximar as pessoas desses autores consagrados, mas pouco lidos. Tanto Guimarães quanto Dostoiévski são muito comentados, mas pouco lidos. Às vezes, penso que o teatro pode ser uma porta de entrada, apresentar esses autores, dar outra camada. Com o Felipe Hirsch, fiquei anos fazendo “Ultralíricos”, montagens de vários textos diferentes, clássicos, contemporâneos, peças com colagens. Tenho essa paixão pela literatura
. Acho que uma grande peça pode começar com um grande livro.
Herson:
Não quero ser monotemático, mas você falou numa entrevista comigo sobre a importância de fazer o que os ingleses fizeram com Shakespeare: disseminar nossos valores literários, como Guimarães Rosa, Machado de Assis, que agora está em alta. Acho interessante colocar nas escolas, em quadrinhos, tornar nossos grandes autores acessíveis.
Caio:
Fazer várias versões. Nossos clássicos são pouco montados também.
Herson
: É verdade. Mas vamos lá, estou louco para fazer a peça hoje.
Caio:
Estou muito feliz com a nossa parceria. Feliz que você aceitou fazer essa peça comigo. Acho que isso foi um resultado do trabalho que fizemos no ano passado, que foi muito especial. Você estava sublime como o patriarca dos Argento. Sinto que estamos abrindo um novo mercado, um novo formato. Essa novela que fizemos no ano passado, “Beleza Fatal”, que vai sair em janeiro no Max, foi um marco. Estamos num momento de muita transformação, zonzos com todas as mudanças do mercado, do público, dos meios de comunicação. Você já passou por muitas transições dessas? Eu estou perdidão.
Herson:
Não, cara, não passei. A única transição foi minha ida de São Paulo para o Rio de Janeiro quando a Globo me chamou. Não foi uma transição de mercado, foi uma transição de vida. Fiz TV Tupi, Cultura, muito teatro em São Paulo, comecei no teatro. Então a transformação foi pessoal. Houve outras transições, como quando a Excelsior, que era dominante, caiu, depois a Tupi, e então a Globo. Mas a única transição real foi minha ida de São Paulo para o Rio. Agora, é realmente um momento muito especial.
Caio:
Mas você viu o cinema retomar, parar, retomar, parar várias vezes. Viu o teatro passar por fases terríveis.
Herson:
É verdade. Vivi a época da censura, quando os produtores apelaram para o que chamaram de “pornochanchada”, com muita sexualidade e comédia ao mesmo tempo.
Caio:
Você fez pornochanchada?
Herson:
Fiz uma, não me senti muito bem, mas tudo bem. Estava precisando, tinha filho nascendo e precisava manter a casa. Todo mundo fez muita pornochanchada. Não eram filmes de alta qualidade, mas era o que tinha no mercado. Mas, em compensação, fiz “O Beijo da Mulher-Aranha” (1985), que foi um ótimo filme, ganhou Oscar de roteiro. Então, também consegui fazer algumas coisas muito legais.
Caio:
E como foi sua experiência com o Hector [Babenco]?
Herson:
Foi legal. O Hector sabia o que fazia. Não era o Hector do fim da vida, que fazia um filme atrás do outro. Era um Hector praticamente começando, e ele era incrível, um diretor fantástico. Fez tudo direitinho. Pegou um produtor americano para poder concorrer ao Oscar. Ele, como diretor, o William Hurt (ator), e o roteirista Leonard Schrader, ganharam o Oscar, inclusive.
Caio:
Incrível. Ele era um diretor de ator sublime, não? Fantástico. Conheci o Hector num projeto gigantesco, o Carandiru, já depois da doença. Sempre o achei um gigante, com uma visão, uma obsessão imensa.
Herson:
É. Agora, uma coisa que queria te perguntar: você tem 40 e poucos anos.
Caio:
Sim, 44.
Herson:
Você tem uma cultura muito grande, desproporcional à sua idade. Como explica isso?
Caio:
Não, é engano. Sempre tive paixão por leitura. Na adolescência, comecei a ler muito mesmo. Queria ler os clássicos, Fausto, a Divina Comédia, os grandes textos. Pirei com Dostoiévski, li um monte de coisas dele, com vontade de adaptar algo. Sempre tive essa paixão pela leitura. Acho que a leitura dá essa sensação de cultura, porque você consegue associar temas. Tenho uma tristeza ao ver que os jovens de hoje não leem. Meus filhos têm uma dificuldade enorme. Líamos para eles toda noite, o quarto cheio de livros. Mas é uma geração com dificuldade de ler, que cresceu com o celular na mão. Tive a sorte de começar cedo. Comecei com 9, 10 anos. Para mim, era uma maravilha, o que eu aprendia era fantástico. As pessoas com quem convivi. Com 12 anos trabalhei na TV Cultura, na série “Mundo da Lua”, com Guarnieri, Fagundes. Com 14 anos, fui fazer “Éramos Seis” com Irene Ravache, Othon Bastos, e essas pessoas me orientaram muito. Irene me indicou para uma peça com Etty Fraser, e comecei a conhecer autores com 12, 13 anos. Com essa idade, já conhecia [Bertolt] Brecht, fui aprendendo na marra. Desde cedo, tive o privilégio de ter grandes professores na prática, já que não fiz escola de teatro. E você saiu do Paraná com que idade? Já fazia teatro lá?
Herson:
Fazia desde os 15 anos. Saí com 19 de Curitiba, quando resolvi a questão militar, e fui para São Paulo decidir o que faria da vida, mas o teatro estava enraizado em mim. Aí veio a dúvida: teatro, vai dar certo? Fui fazer faculdade de Economia, entrei na USP, fiz três anos e voltei correndo para o teatro.
Caio:
Eu também tive isso. Fiz Direito, meu pai me cobrava outra opção de carreira, caso não desse certo. Entrei na USP para fazer Direito, mas só durou um ano e meio. Tomei bomba em Economia, a matéria que você também deixou umas dependências, não foi?
Herson:
(risos) Foi, odiava contabilidade também.
Caio:
E comecei a fazer cinema, fui para o Rio, e não teve volta. Você teve a primeira filha ainda muito cedo?
Herson:
Com 26 anos. Laura nasceu quando eu tinha 26. Aí o Pedro veio aos 29.
Caio:
Você gosta desse esporte, né?
Herson:
(gargalha) Tenho cinco filhos, mais uma ex-enteada que ainda é meio filha, e agora tem o Caio Blat na peça, que é meu filho.
Caio:
Agora tem que me adotar, cara, não desgrudo mais. E com os seus filhos, o mais incrível é que eles têm um espaço enorme entre eles. Então, você sempre teve filho pequeno, né?
Herson:
Sempre. Muitos filhos pequenos, com muita história para contar à noite. Tive um treinamento de inventar história infantil que foi fantástico, porque eu tinha esgotado todas as que lembrava. Todos aqueles velhos clássicos, já esgotei todos. Inclusive, eu lia de vez em quando de dia para poder contar à noite, para me lembrar direito. Aí acabou, e eu comecei a inventar. Nossa, foi fantástico. Tive que ressuscitar uma criatividade ali. Chegou uma hora que não tinha mais. Foi um treinamento fantástico. Mas você tem razão, a gente tem a dificuldade da leitura. Com essa coisa do imediatismo, uma frase rápida aqui no celular, a profundidade fica em segundo plano.
Caio:
Essa coisa dos veículos também, eles estão fazendo vídeos cada vez mais curtos, coisas cada vez mais resumidas, não tem muito contexto. Essa questão do formato é algo que me angustia um pouco. Você sabe que ouvi falar agora de algumas séries orientais que estão vindo, que vão fazer episódios de um minuto. Que é para a pessoa ver no celular, então fazem centenas de episódios. É um longa-metragem, na verdade. É como se fosse um filme de duas horas, mas que serão 120 vídeos de um minuto, lançados um por dia. É o tempo que a pessoa está conseguindo se concentrar na tela.
Herson:
Contar uma história em um minuto é um exercício fugaz, né? A nossa profissão é contar histórias. Adoro quando tem uma história como em “Memórias do Vinho”. É uma história boa, uma história contundente, que prende o público daquele jeito que a gente já viu; prende e emociona, que tem umas risadas também. E é muito gostoso de fazer uma hora e dez minutos contando uma história com a qual o público está junto. Estou sentindo um prazer enorme e vejo que você também.
Caio:
Não, eu estou com um prazer enorme, adoro peça de dois atores, parece um duelo em cena, são dois personagens tentando arrancar algo um do outro. Esse pai e filho, esse luxo, essa honra de estar fazendo essa homenagem para a Jandira [Martini], que também foi uma das minhas primeiras mestras. Eu a conheci ainda pequeno, foi uma grande autora e uma das minhas grandes referências, e deixou esse texto com a gente. Ela me chamou para ler antes de morrer, e depois morreu este ano. E quando a gente se encontrou no velório, eu e Roberto (o produtor Roberto Monteiro), principalmente, sentimos que tínhamos a obrigação de montar. Na hora que ele me perguntou, eu disse: “Quero fazer com o Herson, estou tendo um encontro precioso com ele lá na novela, pai e filho também, e é uma das pessoas que mais admiro e uma das companhias mais agradáveis do mundo.”
Herson:
Temos muita sinergia em cena.
Caio:
E temos uma visão muito parecida da nossa profissão. E eu tive o prazer de te dirigir em cenas da novela. Fui para a ilha de edição.
Herson:
Você foi meu orientador o tempo todo. Você me dirigiu completamente.
Caio:
Não, porque seu personagem era muito poderoso, era o cara mais poderoso da novela, um cara que tem sempre o controle de todas as situações. E pela primeira vez ele perdia o controle. Ele aparece numa crise, e eu coloquei você andando de um lado para o outro, desorientado, a câmera correndo atrás de você. Quando cheguei na ilha de edição, naquele dia, tinham três câmeras rodando ao mesmo tempo, uma ficava no detalhe, outra ficava no close. Quando a cena foi montada, eles tinham usado todas as câmeras. E eu falei: “Não, gente, não é para usar nada disso, é só para ficar na cara do Herson (eles riem), o tempo inteiro na cara dele.” Ficou incrível, quero muito que você veja.
Herson:
Eu senti na hora que estava em boas mãos. Todas as cenas que você dirigiu, ou mesmo os pitacos que você deu como colega, todos eu aproveitei com muita convicção. Temos um ótimo diretor. Além de ser um ator fantástico e um colega de cena maravilhoso. Já falei até para os meus filhos, nunca tive tanta troca em cena quanto estou tendo agora com “Memórias do Vinho”.
Caio:
Falando nisso, e o filme do Pedro (Pedro Freire, filho de Herson), quando chega para vermos?
Herson:
Chama-se Malu, ele vai participar de um festival em São Paulo.
Caio:
O filme passou em Sundance?
Herson:
Foi em Sundance (Sundance Film Festival, em Utah), com os Novos Diretores (New Directors New Films) em Nova York, foi para a África do Sul e agora vai para o Cairo.
Caio:
Que incrível.
Herson:
E ele é professor também, formado na Escola de Cuba, e todo ano ele dá aula lá durante um mês como professor convidado. Ele vai ajudar na assessoria de elenco de um filme estadunidense que vai se passar no México. Está indo bem.
Caio:
Acho muito engraçado que na nossa peça você odeia o fato do seu filho querer ser cineasta. É só porque ele quer vender seus vinhos, por isso você não quer que ele faça cinema. É a única forma de ele financiar o filme dele.
Herson:
Eu me pergunto: ‘Será que algum dia vamos beber um vinho caro daqueles?’. Não temos cacife para isso não.
Caio:
Imagina abrir uma garrafa de vinho que vale 700, 800 mil reais. Fala sério.
Herson:
Não dá não, não dá não.
Caio:
Coisa de maluco, cara. Fico imaginando quem é que toma isso. Só os corruptos poderosos mesmo.
Herson:
De alguma forma, bilionários. Outra coisa que queria falar, até para deixar registrado, mas que direção do Elias [ Andreato
], né?
Caio:
Como ele é objetivo, simples e preciso, não é?
Herson:
Tudo que ele falava eu pegava assim, na unha. E aí ia ver onde ia botar aquilo que ele falou. Mas era ótimo. Ele puxa a simplicidade, ele puxa a delicadeza. Quando tem que ter um pouco de violência, ele sabe pôr também. É o segundo trabalho que faço com ele. Assisti a ele uma vez fazendo uma peça, interpretando Van Gogh, e fiquei muito impressionado com a qualidade de ator dele.
Caio:
Ele é um grande ator. Ele sempre esteve por perto também dos meus grandes mestres, do Fauzi [ Arap
] também, que é meu grande mestre. Mas eu nunca tinha trabalhado com ele. Então foi uma delícia. Você fez qual peça com ele?
Herson:
“A Vela”, no teatro do Shopping Higienópolis, um texto do Raphael Gama. Foi muito bom. Era uma peça ótima, falava de homofobia, um pai que não admitia que o filho fosse gay.
Caio:
E temos uma linda temporada pela frente. Vamos tentar levar a peça para o Rio, né? E quero te levar ao Festival de Curitiba, na sua cidade, que você falou que nunca participou. Achei isso um acinte. É um festival incrível.
Herson:
Vamos embora, matar a saudade da minha terrinha.
Caio:
Estou chegando ao teatro em 15 minutos. Está um trânsito ruim na Faria Lima.
Herson:
Estou pertinho, mas já vou também. Obrigado, Caio.
Caio:
Obrigado, meu querido. Te adoro. Obrigado pela sua generosidade gigantesca e pelo seu talento.
Herson:
Também te adoro e adoro trabalhar com você. Daqui a pouco vamos passar o texto juntos. Abraço.
Teatro Vivo – Avenida Dr. Chucri Zaidan, 2460 – Morumbi
Até 15 de setembro de 2024
Às sextas e aos sábados, às 20h, e aos domingos, às 18h
Ingressos: R$ 150 (inteira), R$ 75 (meia-entrada)* e R$40 (preço popular)**
Classificação: 12 anos
Duração: 70 minutos
Todas as apresentações têm tradução em LIBRAS