O Cerro Torre não é apenas uma montanha; é um obelisco de granito e gelo que desafia a gravidade e a lógica no coração da Patagônia. Com o seu cume frequentemente envolto em nuvens e fustigado por ventos que ultrapassam os 100 km/h, ele foi descrito pelo lendário alpinista Lionel Terray como uma montanha “pela qual vale a pena perder a vida”. Essa aura de impossibilidade transformou o “Torre” no cenário de uma das maiores e mais duradouras controvérsias da história da exploração humana.
O Mistério de 1959: Herói ou Impostor?
A mística do Cerro Torre começou a ser escrita com sangue e incerteza em 1959. Naquela época, o alpinista italiano Cesare Maestri afirmou ter conquistado o cume ao lado do austríaco Toni Egger. Segundo o relato de Maestri, a vitória foi amarga: na descida, uma avalanche varreu Egger da montanha, levando consigo a única câmara fotográfica que continha as provas da ascensão.
Maestri retornou à Europa como um herói, mas a glória foi curta. À medida que outros escaladores tentavam repetir o feito, percebiam que as descrições de Maestri não batiam com a geografia real da montanha. A ausência de grampos, cordas ou qualquer vestígio de passagem da dupla na parte superior do Cerro Torre transformou Maestri, aos olhos de muitos, em um mentiroso. O debate dividiu gerações e transformou o italiano em uma figura central de um drama que duraria décadas.
A Via do Compressor: A Ofensa de Aço
Incapaz de conviver com o descrédito, Maestri voltou à Patagônia em 1970 com uma estratégia radical e, para muitos, antiética. Ele não queria apenas escalar; ele queria provar que a montanha poderia ser subjugada. Acompanhado de uma furadeira pneumática a gasolina de quase 100 kg, ele subiu a face sudeste instalando centenas de grampos de aço, criando o que ficou conhecido como a “Via do Compressor”.
Para a comunidade internacional, o uso da furadeira foi uma “agressão” à pureza do montanhismo. A montanha havia sido vencida pela tecnologia, não pelo talento humano, o que relegou Maestri novamente ao isolamento e à crítica ferrenha dos puristas, levando a sérias discussões que evoluíram ao código de ética atual do montanhismo.
David Lama e o Resgate da Ética
O século XXI trouxe um novo capítulo com a chegada de David Lama, um jovem prodígio austríaco de ascendência nepalesa. Patrocinado por grandes marcas, Lama chegou ao Cerro Torre em 2009 com o objetivo ousado de “livrar” a montanha, ou seja, escalá-la sem usar os grampos de Maestri.
Entretanto, a sua primeira tentativa foi um desastre de relações públicas. A sua equipe de filmagem instalou novas proteções fixas para garantir a segurança dos cinegrafistas, o que foi visto como uma repetição dos erros de 1959 e 1970. Lama saiu da Patagônia desmoralizado, quase sofrendo agressões físicas de escaladores locais. Mas o jovem não desistiu. Três anos depois, em um estilo impecável e minimalista, ele finalmente escalou o Cerro Torre em estilo livre, provando que a montanha poderia ser vencida com respeito e pura habilidade técnica.
O Sangue Brasileiro e o Fim dos Grampos
A história do Cerro Torre também possui capítulos escritos por brasileiros que desafiaram as suas paredes verticais. A lista de brasileiros que atingiram o cume é seleta: Luiz Makoto Shibe (o pioneiro nos anos 90), Alexandre Portela, Edmilson Padilha, Ricardo “Ratinho” Baltazar e, mais recentemente, o jovem talento Ben Soteiro.
Um dos momentos mais dramáticos envolveu o saudoso Ricardo “Ratinho” Baltazar. Em 2012, enquanto descia da montanha, Ratinho testemunhou o fim de uma era. Ele cruzou com os escaladores Hayden Kennedy e Jason Kruk, que haviam tomado a decisão unilateral de arrancar os grampos de Maestri durante a descida. Ratinho foi, possivelmente, a última pessoa a utilizar a Via do Compressor original. A remoção dos grampos gerou uma revolta tão grande na vila de El Chaltén que os dois estrangeiros precisaram de escolta policial para não serem linchados.
Legado e Tragédia
Infelizmente, a montanha cobra o seu preço. Muitos dos protagonistas desta história tiveram fins trágicos: Hayden Kennedy tirou a própria vida após uma avalanche vitimar a sua namorada; o brasileiro Ratinho também partiu precocemente; e o próprio David Lama faleceu em 2017 em um acidente nas montanhas do Canadá.
Hoje, o Cerro Torre permanece lá, despojado das facilidades artificiais de Maestri. Sem os grampos, ele retornou ao seu estado original: uma fortaleza de granito que exige o máximo de qualquer ser humano. Para os escaladores que ainda ousam encará-lo, o topo do Torre continua sendo o teste definitivo de coragem, ética e técnica no mundo do montanhismo e é este contexto que valoriza ainda mais a experiência de Ben Soteiro, o primeiro brasileiro brasileiro a fazer cume sem os grampos de Maestri.









