A recente tragédia envolvendo um montanhista austríaco, que atrasou o resgate de sua namorada, resultando na morte dela perto do cume da montanha mais alta da Áustria, gerou uma intensa onda de comentários e reflexões. Este evento motivou a presente análise: Por que montanhistas experientes evitam ao máximo ou não gostam de ser resgatados? A resposta, em essência, é simples: por vergonha.
À medida que se avança no montanhismo, o corpo e a mente se adaptam. O que seria extremamente desafiador ou exaustivo para a maioria das pessoas torna-se trivial para o montanhista experiente. Não raro, esses veteranos demonstram aversão e desprezo pelos turistas que frequentam as mesmas trilhas. Contudo, o tempo, inevitavelmente, se encarrega de trazer a humildade a todos, mais cedo ou mais tarde.
Eu fui um desses montanhistas arrogantes. No entanto, ao me tornar guia, meu papel mudou: hoje, não apenas conduzo iniciantes em trilhas e montanhas, mas também ofereço aulas, apoio e, até mesmo, conselhos psicológicos. Percebi o quão tolo e arrogante eu era. Atualmente, sinto-me mais realizado por ter ensinado mais de mil pessoas a escalar em rocha e por ter levado outras tantas a altas montanhas, ajudando-as a se superarem e a construírem histórias de vida interessantes, do que por ter sido o “primeiro” a correr pelas trilhas. Compartilhar conquistas é muito mais gratificante do que guardá-las apenas para si.
Ao me colocar no lugar de Thomas Plamberger, que levou sua namorada inexperiente para o pico mais alto de seu país, posso imaginar que ele negou ajuda por puro orgulho, temendo a condenação por não ter completado uma montanha que ele considerava fácil, mas que se tornou um desafio mortal para Kerstin Gutner, sua parceira. No fim, ele enfrentará a pior de todas as condenações.
A cultura do risco x cultura da segurança
A cultura do perigo e o machismo no esporte de montanha é um tema recorrente. Recebi comentários que apontam essa cultura, muitas vezes ligada ao machismo, como incentivadora de atitudes imprudentes. Lembro-me de “montanhistas experientes” que desdenharam de uma via de escalada fácil que abri para iniciantes, classificando-a como “coisa de menina”, como se ser mulher fosse sinônimo de fragilidade ou incapacidade. Essa cultura avessa à prudência incentiva o perigo, o que pode explicar por que as mulheres, em geral, vivem mais.
Minha experiência como membro do Cosmo (Grupo de Socorro em Montanha) no Marumbi, uma montanha perigosa e tradicional do Paraná, me trouxe situações emblemáticas. Em um plantão, deparei-me com uma família que pretendia fazer o “conjunto”, o itinerário mais longo e exigente. Este percurso sobe por um lado, passa por vários cumes, com vertentes íngremes, escadarias e correntes, e desce por outro, exigindo preparo físico e psicológico.
A mochila antiga da família me sugeriu experiência. Na entrevista pré-subida, eles garantiram ter experiência, comida, lanterna, blusa de frio e jaqueta impermeável. Deixei-os seguir.
Perto das 14h, iniciei o “fecha trilha”, subir para verificar a rota, procurar incidentes e auxiliar os mais lentos na descida. Corri pela montanha, passando por montanhistas que já desciam, e encontrei a família “travada” nas escadinhas que descem o Pico do Olimpo, o ponto mais alto, em direção à estação de trem. A mulher, que era atleta de musculação, estava paralisada pelo medo de descer as escadinhas metálicas presas à rocha.
Essas “escadinhas” são, na verdade, simples vergalhões de metal sem corrimão ou proteção. Para quem tem medo de altura, a vista é vertiginosa, pois a montanha é muito vertical e a ferrovia 1200 metros abaixo parece um ferrorama.
Com minha presença, a briga do casal cessou e a moça, que já não confiava no marido (que dizia ser montanhista desde os anos 90), passou a confiar em mim. Fui extremamente paciente, conduzindo-a degrau por degrau. Chegamos à mata no final da tarde, quando o inverno já traz a escuridão. Pedi que usassem as lanternas e eles revelaram: “Lanternas? Só temos a do celular!”. Eles mentiram sobre um item obrigatório e essencial: a lanterna de cabeça, que permite manter as mãos livres, crucial em uma trilha vertical.
Emprestei as lanternas do Cosmo, e a descida lenta continuou. A família estava em atividade desde as 6h da manhã e, às 18h, a noite se instalava. 12 horas de esforço, medo e o frio iminente causaram exaustão extrema na mulher e no filho adolescente, que literalmente se arrastava, rasgando a calça.
Chegamos à estação de trem por volta da meia-noite, recebidos por uma forte tempestade. Era uma chuva de frente fria que, se tivessem pego no alto, poderia ter sido fatal, já que, além de não terem lanternas, também não tinham roupas impermeáveis nem blusas de frio adequadas. Quando souberam que a estação não chegava carros e que teriam que caminhar mais 1,5 km de trilha, eles choraram. Tenho certeza que naquela noite evitei um acidente grave no Marumbi.
O marido, um montanhista experiente da década de 90, subestimou a dificuldade do Marumbi, considerando-o fácil. Ele levou sua família, totalmente inexperiente em montanhismo, para a trilha mais difícil. Sua negligência foi grave: não levou blusa de frio, roupa impermeável, lanche e lanternas, pois acreditava que seria um “passeio no parque”. Essa atitude irresponsável quase resultou na morte de sua esposa e de seu filho de 15 anos, que se não fosse pelo “fecha trilha”, teriam ficado de noite na parte mais alta e mais fria da montanha durante uma tempestade que durou a madrugada inteira.
Ser resgatado é humilhante? Há machismo na cultura do perigo?
Certamente, repreendi o montanhista que levou sua família despreparada para a montanha. No entanto, o mais difícil para quem é do meio é lidar com as piadas e chacotas por ter necessitado de ajuda ou resgate. Essa é uma faceta da cultura de risco que devemos erradicar.
Até mesmo em nosso grupo de socorristas voluntários de montanha, o auxílio é, por vezes, necessário. No Marumbi, o experiente escalador José Luiz Hartmann, o “Chiquinho”, que desbravou algumas das vias mais desafiadoras do Brasil, escalou na Patagônia e até mesmo na Trango Tower, no Paquistão, sofreu um acidente. Ele quebrou o pé e precisou de um resgate de helicóptero. Alguém o ridicularizou? Claro que não! Ser resgatado, portanto, não é motivo de vergonha, mas sim uma necessidade que pode atingir qualquer um, até mesmo o mais experiente dos montanhistas.
Infelizmente, nem todos têm essa sorte. Certa vez, uma amiga, guia profissional super elogiada que já trabalhou para minha empresa, cometeu um erro ao descer o Dedo de Deus (Serra do Mar Fluminense) e ficou pendurada no escuro, longe do chão. Ela agiu prontamente, acionando os bombeiros militares do Rio de Janeiro, que a resgataram com total profissionalismo. Contudo, ela foi alvo de piadas de alguns montanhistas de minha cidade. Isso me leva a questionar: se ela foi ridicularizada e o Chiquinho não, há machismo implícito nesse julgamento?
Para finalizar
É reconfortante saber que equipes de resgate em montanha estão preparadas para atuar em acidentes, prevenindo o pior. Embora ser resgatado não deva ser motivo de vergonha, é inevitável que a causa do incidente seja analisada. Muitas vezes, a origem desses acidentes reside em ações imprudentes, negligentes ou inexperientes por parte do montanhista.
Observa-se, por exemplo, o que se denomina “cultura do perigo”, onde atitudes arriscadas são até admiradas no montanhismo, rotuladas como algo “raiz” ou uma “escalada de macho”, chegando-se a comentar que “o cara tem três bolas”. Essa postura seria um reflexo de uma cultura machista? Fica o questionamento e o espaço dos comentários para a reflexão de vocês.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG








