quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Morra, Amor é o Yin-Yang da natureza feminina

Quando nos aproximamos da temporada de premiações, sempre começa aquele barulho relacionado a alguns filmes que mostram-se possíveis competidores para levar de volta para casa, algumas estatuetas de certo valor.

E, desde a première mundial de Morra, Amor (2025), da renomada diretora Lynne Ramsay, no Festival de Cannes 2025, muito tem sido dito a respeito da crua e visceral performance de Jennifer Lawrence, já ganhadora de um Oscar, na carreira.

De fato, os elogios são justos, porém, é importante que se pontue que tal qualificada performance deve-se, inteiramente, à disponibilidade da jovem atriz em deixar-se levar pelo agudo e complexo texto, manejado pela inspirada Lynne Ramsay.

Morra, Amor é um drama psicológico, dirigido por Lynne Ramsay e escrito por Enda Walsh, Ramsay e Alice Birch, baseado no romance Die, My Love, de Ariana Harwicz, publicado em 2012. A história é estrelada por Jennifer Lawrence como Grace, uma jovem mãe na zona rural, de Montana, que luta contra uma grave depressão pós-parto e psicose, que começam a desfazer o seu casamento com o marido Jackson (Robert Pattinson) e sua sanidade.

Se, por um acaso, apenas nos deixarmos levar pela sinopse do filme, naturalmente iremos perder todo um complexo de emoções e ideias elaboradas pela cineasta, que fez de Morra, Amor, um tipo de reedição do Jardim de Éden, com Pattinson e Lawrence, como os novos Adão e Eva.

Nesse momento, pode ser que esteja pensando que já viu esse cenário antes, no caso, Jennifer Lawrence fazendo o papel de uma figura ou entidade de dogma religioso espiritual, que passa a história dentro de uma casa, junto de seu cônjuge e uma criança recém-nascida. Se possui uma boa memória, percebeu que estamos falando sobre Mãe! (2017), do prestigiado cineasta Darren Aronofsky, obra de terror psicológico onde ele buscou expressar um grande resumo da trajetória que surgia no Livro do Gênesis, culminando com o caos do Livro da Revelação (Apocalipse).

Todavia, é necessário afirmar que o exercício criativo empolado de Aronofsky, não convenceu, de modo geral. Sua tentativa de dissertar visualmente e com palavras, as diferenças da natureza de um homem e uma mulher, acabaram por se inclinar mais para uma vaidade pessoal do diretor do que algum tipo de meditação sobre as nossas condições humanas como habitantes de um planeta mal cuidado.

Agora, Lynne Ramsay não se deixou cair nas mesmas armadilhas estridentes de Mãe!, ela recriou o Jardim de Éden, com os mesmos elementos conhecidos do mito da criação das religiões abraâmicas, ou seja, temos Adão, Eva, o Jardim (zona rural do estado de Montana), Deus (pai de Jackson), a serpente (mãe de Jackson) e o fruto proibido (motoqueiro misterioso).

Mas, pela esperteza de Ramsay, notamos ela ressignificando tais elementos para que possa, eventualmente, chegar aonde almeja: manifestar a horizontal e vertical do que é viver a natureza do feminino.

E, já que o ponto em questão é explorar essa jornada de Grace – no traduzido, Graça – torna-se obrigatório a revelação de luz e sombra que habita o manifesto do que é ser mulher.

Logo no início, ainda na primeira parte de Morra, Amor, temos uma cena simbólica. Grace levanta-se durante a madrugada para amamentar o seu bebê, logo após colocá-lo novamente para dormir, retira-se do quarto de seu filho e caminha em direção ao escritório, onde deveria trabalhar em seu novo romance literário – o que não conseguiu mais fazer após o nascimento da criança – quando sob a mesa, encontra uma superfície branca, na qual despeja tinta nanquim (cor preta), só que Grace encontra-se nesse momento, com um seio para fora, assim, logo depois de amamentar, gotas de seu leite materno (cor branca), pingam sob a mesma superfície, fazendo com que os líquidos se misturem.

Mais do que uma reprodução sobre as dificuldades claras do que representa viver a maternidade e a possibilidade da depressão pós-parto, Morra, Amor é uma declaração sensorial do Yin-Yang da natureza feminina.

Pelos conceitos do taoísmo, Yin e Yang expõem a dualidade de tudo que existe no universo. Descrevem as duas forças fundamentais opostas e complementares que se encontram em todas as coisas: o Yin é o princípio da noite, Lua, a passividade, absorção; já o Yang é o princípio do Sol, dia, a luz e atividade.

Segundo essa ideia, cada ser, objeto ou pensamento possui um complemento do qual depende para a sua existência. Esse complemento existe dentro de si. Assim, se deduz que nada existe no estado puro: nem na atividade absoluta, nem na passividade absoluta, mas, sim, em transformação contínua. Além disso, qualquer ideia pode ser vista como seu oposto quando visualizada a partir de outro ponto de vista. Neste sentido, a categorização seria apenas por conveniência. Estas duas forças, Yin e Yang, seriam a fase seguinte do “tao”, princípio gerador de todas as coisas, de onde surgem e para onde se destinam.

O diagrama do tei-gi simboliza o equilíbrio das forças da natureza, da mente e do físico. Yang (branco) e yin (preto), integrados num movimento contínuo de geração mútua, representam a interação destas forças. A realidade observada é fluida e em constante mutação, na perspectiva da filosofia chinesa tradicional. Portanto, tudo que existe contém tanto o princípio yin quanto o yang. O símbolo tei-gi expressa esse conceito: o yang origina o yin, e o yin destina o yang.

Em resumo: Lynne Ramsay está dissertando sobre o princípio básico humano, ou seja, somos seres de luz e sombra, que transitam interiormente e para o exterior de nós mesmos.

O detalhe é que a cineasta usou de Grace – e a atuação feral de Jennifer Lawrence – para representar a frequência destas emoções e pensamentos eclodindo para fora de nossa protagonista, que retorna ao seu estágio mais selvagem, naturalmente, cercada pelo verde infindável dos campos rurais, do estado de Montana, e longe do concreto e formalidades da vida urbana civilizada, de Nova York.

Curioso que, ao contrário dos projetos anteriores mais recentes de Lynne Ramsay, no caso, o denso  Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011), com Tilda Swinton e Ezra Miller, e o excepcional Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017), com Joaquin Phoenix, que finalizavam com uma nota (levemente) mais solar do que aquilo que acompanhávamos, até então; Morra, Amor exprime algo mais cru, que não deve ser confundido como qualquer tipo de conceito pessimista, por parte da diretora escocesa.

Na realidade, pode ser visto e sentido como uma forma de enfrentamento. Um ato de desafio a tudo aquilo o que se imaginava sobre o que é ser mulher. É encarar o calor do inferno em seu estado mais natural, pois, uma vez que resolveu saborear do fruto proibido, agora, encontra-se consciente da própria luz e sombra, que transmuta continuamente pelo feminal.

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