Essa é uma discussão que ultrapassa o mundo do montanhismo e entra no campo da Geografia, mas a própria ciência apresenta discursos contraditórios.
Sou montanhista há 27 anos, brasileiro, e comecei a escalar no Brasil. Embora tenha realizado muitos feitos internacionalmente, adquiri grande experiência e conhecimento frequentando nossas montanhas. Mas, afinal, por que tantos insistem que no Brasil “não existe montanha”?
De norte a sul, temos relevos montanhosos. No extremo norte, impõe-se o majestoso Monte Roraima, com seu cume aplainado de mais de 42km2 acima de 2 mil metros. É uma paisagem pré-histórica que motivou Conan Doyle a escrever “O Mundo Perdido”. Nosso cume mais alto, o Pico da Neblina, na fronteira com a Venezuela, tem sua base por volta dos 200 metros no Rio Cauaburis e quase atinge os 3 mil metros com seu topo de quartzito.
A capital do nosso país, Brasília, é a capital mais alta, sobrepassando os mil metros em pleno Planalto Central. Embora o Planalto não tenha relevo acentuado, há aqui e ali montanhas rochosas. Nada comparado, é claro, aos Monólitos e Inselbergs do Nordeste, que se concentram em locais como Quixadá (CE), Itatins (BA) e Patos (PB). Em ambientes úmidos, relevos como o Pão de Açúcar – famoso na Cidade Maravilhosa, mas muito presente também em Minas Gerais e Espírito Santo – são um espetáculo.
Também não se pode esquecer o relevo montanhoso da Serra da Mantiqueira e Serra do Mar, cadeias que se estendem de norte a sul. Tradicionalmente, são os locais mais frequentados por montanhistas: Pico das Agulhas Negras, Serra Fina, Pico dos Marins, Serra dos Órgãos e Pico Paraná são exemplos de montanhas clássicas dessa região.
Por que a Controvérsia?
Essa polêmica não é nova; ela deriva de um antigo paradigma da Geografia: a teoria sobre a evolução do relevo de 1899, elaborada pelo geólogo William Morris Davis. Talvez você já tenha ouvido falar que as montanhas do Brasil são “antigas”; este conceito veio da teoria de Davis.
De acordo com ele, o relevo sofre um rápido e abrupto levantamento (soerguimento), dando origem a montanhas elevadas com cumes escarpados. Para estas, que têm os Alpes como exemplo, ele chamou de “montanhas jovens”. Com o passar do tempo, as montanhas sofrem erosão, perdem altitude, ficam arredondadas e com altitudes baixas. Para estas menores e desgastadas, Davis chamou de “montanhas velhas”.
O problema é que a teoria de Davis, com seus 126 anos, é considerada ultrapassada pela ciência moderna, pois a história natural é dinâmica, e eventos de erosão e tectonismo se sobrepõem constantemente. Mas, infelizmente, essa teoria ainda é ensinada nas escolas, que colocam o relevo brasileiro como “antigo” e, pior, o classificam como morro, e não como montanha.
O Conceito Correto
Para a Geografia, “montanha” não tem conotação genética. Ou seja, mesmo que muitos geógrafos restrinjam o termo às formações por tectonismo recente, na Geomorfologia o conceito refere-se apenas a uma forma de relevo com desnível topográfico acima de 300 metros. Isso é bem descrito em clássicos da literatura, como no Dicionário Geológico e Geomorfológico de Antonio Teixeira Guerra.
Afinal, existem montanhas no Brasil?
Mas é claro que sim! Quem nega essa afirmação se baseia em teorias antigas e em negligências conceituais.
Entretanto, a classificação geomorfológica de elevação superior a 300 metros é simplista, pois 300 metros pode ser muito na Serra do Mar e não ser nada no Himalaia.
Para resolver este problema, o alemão Eberhard Jurgalski criou o conceito de Índice de Dominância.
Este índice é uma medida percentual que relaciona a altitude de um pico com a sua proeminência (diferença de altitude entre o cume e o ponto mais alto do colo que o conecta a um cume mais alto). A fórmula é:
dominancia (%) = ( prominencia (m) / altitude da montanha em questao (m) ) x 100
Por convenção, baseada na análise de Jurgalski em centenas de montanhas inquestionáveis, um pico é geralmente considerado independente se possuir um Índice de Dominância superior a 7%. Picos mais altos em seus maciços (como o Monte Everest ou o Aconcágua) possuem uma Dominância de 100%.
O Índice de Dominância é até agora o conceito mais justo para determinar o que é uma montanha e o que é um cume secundário, exatamente por ser uma medida relativa, enquanto que os 300 metros do conceito geográfico não levam em consideração as diferenças altimétricas entre grandes e baixas montanhas. No conceito geográfico, por exemplo, o famoso Pico do Itaguaré, na Serra da Mantiqueira, não seria uma montanha, enquanto o Lhotse Shar, um sub-cume do Lhotse, que fica ao lado do Everest, é. No Índice de Dominância, todas essas montanhas e sub-cumes estão em seu devido lugar.
A Nova Lista de Montanhas
Agora que destrinchamos o assunto e afirmamos que o Brasil tem montanhas, sempre vem a pergunta: Quais são as montanhas mais altas do Brasil?
Você certamente deve ter visto a lista dos cumes mais altos do Brasil que é publicada no anuário estatístico brasileiro.
Pois bem, esta lista, bastante difundida na internet, inclusive nos fóruns de montanhismo, não é uma lista de montanhas, é uma lista de cumes! Sim. Nem todo cume é uma montanha, como bem demonstram o conceito geográfico/geomorfológico e o Índice de Dominância.
O maior exemplo da diferença entre um cume e uma montanha é o Pico 31 de Março, o segundo cume mais alto do Brasil, que fica ao lado do Pico da Neblina. Este cume, por ser muito próximo e ter um desnível topográfico muito pequeno, não é uma montanha, ele é um subcume, ou um cume secundário da montanha mais alta do Brasil.
Diversos cumes tradicionais em regiões montanhosas brasileiras não são montanhas! Como o Pico das Prateleiras e Pedra do Sino de Itatiaia, o Morro da Luva da Serra dos Órgãos, o Pico do Cristal e Calçado no Caparaó.
Utilizando o conceito do Índice de Dominância, reuni a informação topográfica das montanhas brasileiras e apresento em primeira mão a primeira lista das montanhas mais altas do Brasil.
Por enquanto estou divulgando as 20 montanhas mais altas do Brasil. Contabilizei 70 montanhas com mais de 2 mil metros, porém ainda preciso de tempo para obter dados topográficos mais precisos. Abaixo está a tabela com as 20 montanhas mais altas do Brasil, a fonte de dados, proeminência e dominância.
| Posição | Montanha | Altitude | Estado | Proeminencia | Dominancia |
| 1 | Pico da Neblina | 2995 | AM | 2915 | 97,33% |
| 2 | Pico da Bandeira | 2891 | ES/MG | 2811 | 97,23% |
| 3 | Monte Roraima | 2810 | RR | 2310 | 82,20% |
| 4 | Pedra da Mina | 2798 | SP/MG | 2038 | 72,83% |
| 5 | Agulhas Negras | 2790 | MG/RJ | 1121 | 40,17% |
| 6 | Morro do Couto | 2687 | RJ | 330 | 12,30% |
| 7 | Pico Três Estados | 2665 | RJ/MG/SP | 266 | 9,98% |
| 8 | Pico do Tesouro | 2620 | MG | 238 | 9% |
| 9 | Pico da Maromba | 2613 | RJ | 294 | 11,20% |
| 10 | Pico 2602 | 2602 | AM | 429 | 16,48% |
| 11 | Cabeça de Touro | 2600 | SP | 186 | 7,15% |
| 12 | Pedra Furada | 2589 | MG | 199 | 7,60% |
| 13 | Pico Serra Negra | 2572 | MG | 316 | 12,20% |
| 14 | MF BV B/4 | 2561 | AM | 344 | 13,43% |
| 15 | Pico do Imeri | 2500 | AM | 2140 | 85,60% |
| 16 | Pico dos Marins | 2420 | SP | 1240 | 51,23% |
| 17 | Roraiminha | 2400 | RR | 460 | 19,16% |
| 18 | Pico Maior de Friburgo | 2366 | RJ | 1956 | 82,67% |
| 19 | Pico Médio de Friburgo | 2361 | RJ | 181 | 7,66% |
| 20 | Pico do Garrafão | 2359 | MG | 764 | 32,38% |
Como se nota na tabela acima, usando o conceito de montanha por Índice de Dominancia, a lista das montanhas mais altas do Brasil muda bastante com relação à lista dos cumes do IBGE. O 31 de Março deixa de figurar e novas montanhas aparecem, incluindo montanhas sem nome, com a décima mais alta, que temporáriamente chamei-a de Pico 2602, que é a altitude de seu cume. Note também, que se fossemos fazer uma tabela pelo conceito geográfico, várias montanhas famosas deixaria de figurar também, pois não tem mais de 300 metros de proeminencia.
Considerações Finais
Neste artigo, dissecamos vários pontos controversos do montanhismo e da Geografia brasileira. Apesar de termos traduzido conceitos complexos (como o Índice de Dominância e o Paradigma de Davis) para um público mais amplo, o resultado final é inequívoco e contradiz o que é comumente difundido no ensino tradicional e no senso comum do próprio montanhismo.
Por meio desta análise, esperamos ter esclarecido as razões históricas para tanta confusão. Encerramos este debate com uma certeza: as evidências geográficas e os critérios internacionais (como o Índice de Dominância) nos permitem afirmar de forma definitiva que, sim, o Brasil possui montanhas notáveis e inquestionáveis, das quais agora podemos, enfim, listar as mais altas.








