Os impactos da enchente que atingiu o Rio Grande do Sul entre abril e maio do ano passado ainda permanecem. Considerada a pior tragédia da história do estado, deixou mais de 180 mortos e, passados mais de 12 meses, os produtores rurais convivem com dívidas quase impossíveis de pagar. Essa reportagem, originalmente escrita por Beatriz Gunther, foi uma das mais lidas da semana. Acompanhe:
Para quem vive da produção agrícola no estado, as cheias foram apenas o desfecho de uma sucessão de eventos climáticos que já vinha comprometendo as lavouras. Na soja, por exemplo, apenas a safra 2020/21 escapou de perdas significativas. As outras seis registraram quebras, seja pelo excesso de chuvas, seja pela seca prolongada, de acordo com a Emater.
Esse cenário tem levado muitos agricultores a abandonar a atividade. O reflexo aparece também no mercado de arrendamento rural, já que produtores descapitalizados deixam áreas arrendadas e a procura por contratos desse tipo diminui, sobretudo nas regiões mais afetadas por enchentes e estiagens recentes.
Produtores pedem socorro
O produtor Lucas Scheffer, de Cacequi, confirma a redução da área cultivada com soja no Rio Grande do Sul. Segundo ele, o agrônomo que presta assistência à sua família acompanhava 12 mil hectares no ano passado, mas neste ciclo a área caiu para 5 mil hectares. A queda não ocorreu por perda de clientes, e sim porque produtores simplesmente deixaram de plantar.
No modelo de arrendamento, o agricultor firma contrato com o dono da terra, que cede o uso da área para a produção agrícola. Scheffer relata que ele e o irmão cultivam exclusivamente em terras arrendadas, mas tiveram de reduzir a produção. “Eu e meu irmão reduzimos 50% da nossa área de milho: de 1.400 hectares para 700. As áreas destinadas apenas à soja foram todas largadas”, relata.
Ele também destaca que o endividamento resulta de sucessivas quebras de safra. “Somando os juros de cada linha e os custos, a conta não fecha. Além disso, estamos falando de uma das safras mais caras dos últimos cinco ou seis anos no Brasil”, afirma.
A situação descrita por Fernando Camargo, produtor de Júlio de Castilhos, na região central, é ainda mais contundente. Ele considera desistir do plantio nos próximos anos por acreditar que a atividade se tornou inviável. O agricultor cultiva cerca de 400 hectares, dos quais apenas 70 ou 80 são próprios; o restante é arrendado.
“Vou plantar esta safra porque estou com as coisas meio alinhadas, e se eu conseguir amortizar no ano seguinte e vender um imóvel para pagar minhas contas, eu vou sair fora da agricultura. Isso não é vida”, desabafa.
Rescisão unilateral: alternativa legal
O arrendamento rural funciona como um “aluguel de terra”, mas transfere ao produtor todos os riscos da atividade. Mesmo diante de quebras de safra, ele deve arcar com o valor combinado.
O advogado Albenir Querubini, professor do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA), lembra que, nesses casos, a legislação prevê a resilição unilateral. Pelo artigo 473 do Código Civil, o arrendatário pode encerrar o contrato sem sofrer penalidades ou ser impedido pelo proprietário.
Querubini reforça, porém, a importância da negociação. “Sempre é recomendável buscar acordo, seja para reduzir a área, ajustar o preço ou até encerrar o contrato. Mas os arrendatários também precisam conhecer a possibilidade da rescisão unilateral em situações como as do Rio Grande do Sul, desde que motivada e comprovada por fatores climáticos”, orienta.
Futuro incerto
Com a proximidade do plantio da safra de verão, os produtores gaúchos se veem diante de um impasse. O presidente da Aprosoja-RS, Ireneu Orth, confirma a tendência de queda nos arrendamentos e alerta que dificilmente o estado colherá uma boa safra. Segundo ele, há dois fatores distintos: o clima e as condições de produção.
“Se chover dentro da normalidade, esse é um aspecto. Mas mesmo assim dificilmente o estado terá uma grande safra, porque muitos produtores deixarão de plantar, especialmente em áreas arrendadas, e outros irão para o campo sem insumos ou com menos do que o necessário”, afirma.
Na avaliação de Querubini, os obstáculos se multiplicam. “O endividamento do produtor rural gaúcho, os custos de produção, a queda do preço da cotação dos grãos e a baixa oferta de crédito para custeio têm sido verdadeiros obstáculos para a agricultura. Por isso, é preciso ter políticas públicas para renegociação de dívidas agrícolas e, ao mesmo tempo, programas para enfrentamento de novas estiagens, com incentivo à armazenagem de água, irrigação e melhoramento de solos”, aponta.
Para Scheffer, o entrave está claro: o Plano Safra está bloqueado pela inadimplência e pela escassez de recursos. Situação semelhante vive a produtora Ana Debortoli. Ela e o marido, Marcelo, tentam há cinco anos manter a atividade rural. Para pagar dívidas, venderam as poucas máquinas que tinham, e até o carro da família foi tomado pelo banco.
As dificuldades financeiras se somam a problemas de saúde e à falta de crédito para seguir produzindo. “Já passamos um mês inteiro comendo apenas arroz e feijão. Ainda assim, não desanimo. Tenho que ter força para ajudar minha família”, conta.
No campo gaúcho, muitos produtores não sabem como plantar a próxima safra, mas seguem resistindo. “O que resta para nós é reduzir áreas, tentar diminuir custos de arrendamento e se manter na atividade por três ou quatro anos, na esperança de dias melhores para quitar dívidas e honrar compromissos”, resume Scheffer.